“Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, livro escrito
há 84 anos, já parece inocente diante das novas tecnologias.
Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)
Não me engano: daqui a alguns anos, o assunto desta crônica arrancará sorrisos piedosos dos leitores diante das passadas gigantescas da ciência, que, de braços dados com a tecnologia, faz o universo parecer o quintal de casa. Natural. Quando eu era adolescente, li a (até então) polêmica obra Admirável mundo novo, do inglês Aldous Huxley, lançada em 1932, e aquilo me pareceu tão exótico e improvável quanto imaginar alguém tendo bebês fecundados em laboratórios, que era exatamente a forma como Huxley concebia os nascimentos, naquela civilização dividida por castas: Alfa, Beta, Gama, Delta, Ípsilon. Que ingenuidade, a minha. Hoje, crianças gestadas em tubos de ensaio são uma experiência que não causa surpresa nem a bisas, muitas delas já com dificuldade de desgrudar das redes sociais. Para se ter uma ideia de como a ficção de Huxley já caminha para ser aplicável apenas à Gotham City de Batman, eu tenho um amigo bem jovem, avesso à ideia de casamento, mas muito decidido a ser pai sozinho, que se envolveu em uma empreitada, para mim, moderna em excesso: certa empresa que representa, no Brasil, uma gigante israelense deste ramo, reúne, em São Paulo, homens dispostos a pagar US$ 130 mil para serem pais do outro lado do mundo, mais precisamente nos Estados Unidos. O candidato fornece o material biológico, escolhe as características que quer para o filho, incluindo o sexo, aprova ou desaprova o perfil da mãe escolhida, jamais sabe quem é ela, e depois vai apanhar a criança recém-nascida, já com toda a documentação de cidadã norte-americana, trazendo-a para o Brasil com a dupla cidadania. Não imagino que reação teria uma velha parteira ao me ouvir relatar a quantas anda a formação das novas famílias mundo afora.
O mundo está mesmo ficando irreconhecível, da perspectiva de quem acostumou-se com a natureza ditando as regras. Até parece que subvertê-las passou a ser uma ordem .Mas, a propósito de tudo isso, qual não foi minha surpresa ao ler que a gigante inglesa British Airways já patenteou uma pílula digital – sensor que, uma vez engolido, vai passar para a equipe de bordo ficha completa sobre o estado de saúde do passageiro e, entre outros dados, qual a reação orgânica dele à comida oferecida na aeronave. De acordo com o que foi divulgado, a tecnologia saiu da cabeça de cientistas da empresa californiana Proteus Digital Health, especializada em medicina digital, com larga atuação em hospitais ultramodernos.
Ao contrário do que o leitor poderia imaginar, não importa apenas o impacto causado pela revolução tecnológica presente no atual e nada “admirável mundo novo” nosso de cada dia. Ela aprofunda o abismo que separa o povo de lá do povo de cá, realça diferenças já enormemente perturbadoras como o fato de, aqui, até o pobre lanchinho servido nas aeronaves estar sendo vendido – e a preços nada módicos, porque esta expressão simplesmente não existe no dicionário das práticas comerciais no Brasil. Convenhamos que, como passageiros, estamos a um oceano de distância dos britânicos, gente acostumada a receber tratamento compatível com os direitos que possui. Então, não posso achar outra coisa a não ser que esta é, para nós, a pílula da humilhação suprema, aquela que evidencia a pobreza do nosso padrão de consumo e a decência do deles.
Resta saber é, se um inglês tiver o hábito ou a necessidade de realizar seguidas viagens em um curto espaço de tempo, como suportará o estômago cheio desses sensores. Porque, em nenhum momento, foi explicado como seria a saída deles do corpo de quem os engole como a um inocente comprimido contra azia ou enjoo. Bem, mais isto não é um assunto (ou um problema?) que nos diga respeito. A nós cabe apenas permanecer querer descobrir o que acontecerá se, mesmo pago, o mísero lanchinho fizer mal, a 11 mil metros de altura, sem nem um aprendiz de enfermeiro para acudir.