Onda direitista é reação a “ciclo progressista” da segunda metade do século 20, diz historiador francês.
Vandeck Santiago (texto)
Geoffroy Van Der Hasselt/AFP
No Brasil, quando se fala em “esquerda” e “direita” sempre ecoam vozes pontuando que essa classificação “não existe mais” e tornou-se, por isso, uma ferramenta “obsoleta” para análise. Aí você dá uma olhadinha sobre o debate político na Europa e vê que um dos livros mais comentados neste final de ano, na França, intitula-se A direitização do mundo… (La droitisation du monde, no original). O autor é François Cusset, professor de Estudos Americanos na Universidade Paris- Ouest-Nanterre, historiador com vários livros publicados.
O foco principal do seu livro são os acontecimentos nos EUA e Europa, que acabam influindo em outras partes do mundo. François Cusset identifica três movimentos conservadores nas três últimas décadas. O primeiro nos anos 1980, com Ronald Reagan nos EUA e Margaret Thatcher na Inglaterra. O segundo nos anos 1990, com a desregulamentação dos mercados financeiros (que favoreceria a especulação) e o terceiro que seria o que estamos vivendo agora, cujo início deu-se nos anos 2000: o do “oportunismo ideológico”, onde “o liberalismo econômico se aproxima do conservadorismo social”.
Nos EUA Donald Trump foi eleito; na França, o presidente socialista François Hollande desistiu de concorrer à reeleição e a previsão é que a disputa presidencial francesa dê-se entre a extrema-direita e a direita (cujo candidato, François Fillon, é admirador de Thatcher). Nota-se também o avanço da direita em outros países da Europa e América Latina, como o Brasil.
Nesse cenário, como fica a esquerda? Em entrevista à imprensa francesa, François Cusset disse que a esquerda vive hoje uma fase “esquizofrênica”, cindida “em dois mundos que não habitam o mesmo planeta”. De um lado existe uma esquerda “governamental e gestora, que não oferece mais novidade ideológica” (soa familiar?…), e de outro uma esquerda embrionária, que se opõe à anterior e tem vínculos com a vida cotidiana, novas formas de engajamento, mobilizações coletivas, porém ainda sem pujança eleitoral para conquistar o poder (salvo exceções localizadas). Ou seja: no curto prazo, não se vislumbram grandes alterações no terreno à esquerda.
As três ondas de “direitização do mundo”, na conceituação do professor, constituem-se em um “ciclo contrarevolucionário” que emergiu após o “ciclo progressista” da segunda metade do século 20, quando tivemos “a descolonização de dois terços do planeta, a emergência de uma cultura jovem, protestos estudantis e operários, o Estado de bem-estar social”. Tais fatos provocaram, a partir de meados da década de 1970, uma reação de “linhas variadas que se misturam”, conforme explicação de François Cusset: o capitalismo familiar, nacional e protecionista, tornou-se especulativo, acionista e globalizado. A economia de produção virou financeira e especulativa. “O consumo define agora, plenamente, nossa existência individual e coletiva…”, diz ele.
Os argumentos de François Cusset são, obviamente, mais profundos e variados do que este resumo que fazemos aqui. Mas a “direitização do mundo” tornou-se um tema atual em qualquer lugar que você esteja, Recife, Nova York, Paris, Tegucigalpa ou São Paulo. Por que, em determinados momentos, ocorrem fenômenos sociais e políticos semelhantes em países distintos, como se uma mesma mão invisível estivesse agindo? O estudo do professor e historiador francês faz uma abordagem científica do assunto e abre clareiras para que vejamos como estamos todos nós ligados direta e/ou indiretamente a forças políticas e econômicas que movem o mundo — e que o nosso posicionamento voluntário ou involuntário em relação a tais forças é a confirmação de que “esquerda” e “direita” são conceitos ainda longe da extinção.