Briga entre poderes ganhou capítulo especial, ontem, e deixou população mais apreensiva.
Luce Pereira (texto)
Nelson Jr./STF e Marcelo Camargo/Agência Brasil (fotos)
“Que Natal, minha senhora?”, respondeu o senhor de cabelos completamente brancos, contrastando com a roupa muito à vontade – bermuda até o joelho, camisa polo e sandálias. A moça do caixa ficou um pouco sem graça, mas os argumentos que vieram a seguir arrancaram dela as maiores aquiescências, dado que o desmantelo do Brasil bate no cidadão comum como se ele, coitado, fosse o culpado e não a eterna vítima. Padarias não são exatamente locais onde se desenrolem discussões políticas, mas a repetição das dores que este lado da vida pública tem causado logo tratou de acabar com as distinções: agora, em tudo quanto é canto e a qualquer hora, as lamentações e os palpites ganham corpo, não se fala em outra coisa, porque não apenas o Natal está ameaçado de ser um dos mais modestos e contidos dos últimos tempos como os dias de 2017, de se transformarem em interrogações ainda maiores sobre o futuro.
O senhor da padaria estava, como estão todos, impactado com o desfecho, ontem, da queda de braço travada entre a Suprema Corte do país e o presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, desde que a instituição decidiu torná-lo réu numa ação de 2005 por peculato, relativa a pagamento de pensão a uma filha fora do casamento com verbas do próprio gabinete. E para a malha de dificuldades entre os dois poderes ficar ainda mais intrincada, o ministro Marco Aurelio Mello expediu liminar afastando Calheiros da presidência do Senado, que foi prontamente recusada pela Mesa Diretora da Casa, incluindo-se entre as assinaturas a do vice-presidente, Jorge Viana (PT-AC). Ele não sai. Como assim, não sai? Deve ter sido a pergunta mais feita no Brasil, ontem, porque, nunca antes na História deste país, algo ou alguém havia desafiado o Supremo Tribunal Federal a este ponto e colocado em xeque a instância máxima de poder no país.
As sombras se adensam, com a população dando claros sinais de intolerância ante as medidas que apertam até o último nó o cinto da classe trabalhadora e estados como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais revelando o caos financeiro em que se encontram. Para acrescentar uma onda a mais no mar revolto, a presidente do STF, Cármen Lúcia, ainda abre o 10º Encontro Nacional do Poder Judiciário, em Brasília, na última segunda-feira, dizendo “vamos ter guerra, não tem como escapar”.
E a senhora ainda sonha com um feliz Natal, minha senhora? Pois, segundo a ministra Cármen Lúcia, “há uma enorme intolerância com a falta de eficiência do Poder Público, que nos leva a pensar como é que temos de agir para que a sociedade não desacredite no Estado, uma vez que o Estado democrático previsto constitucionalmente parece ser até aqui a nossa única opção. Ou é a democracia ou a guerra. E o papel da Justiça é exatamente pacificar”. Sem dúvida, o papel da Suprema Corte é zelar pela democracia e colocá-la acima de qualquer possibilidade, mas e quando tem uma decisão sua contrariada, como foi o caso da liminar determinando o afastamento de Renan Calheiros da presidência do Senado? A desobediência, num caso assim, pode significar 15 dias a dois anos de prisão, mas quando o réu tem uma musculatura política tão surpreendente, a pena corre o risco de ser paga por quem a imputou. Independentemente do que o STF decida, neste caso, os estragos, com a recusa, já estão feitos: fica parecendo que o Supremo foi desmoralizado e que o país, ante o confronto de forças entre os dois Poderes, está à deriva.
Ou seja, com o Brasil entre a cruz e a caldeirinha, o senhor da padaria vai reunindo mais argumentos para fazer piada com a tese de feliz Natal. No entanto, a de que a lei deve ser cumprida, custe o que custar, esta não pode sofrer o menor abalo. Ao menos isto deve continuar intacto, neste e em todos os natais.