Profissão sofre com uso perverso da imagem, que aproximou a ternura do sinistro e fez o mundo sentir medo.
Luce Pereira (texto)
Greg (arte)
Todo mundo com ao menos a alma de palhaço ou doce como a de uma criança deveria protestar contra a distorção da imagem deste que é um dos maiores ícones da infância. Cresci com o coração aos pulos cada vez que o carro velho anunciava a chegada do circo à cidade, sinônimo de diversão pura, minutos de gargalhadas imperdíveis garantidas por aqueles sujeitos atrapalhados e de rostos escondidos por muitas cores. Quem se importava se parecia sempre uma pintura de gosto duvidoso, uma caricatura difícil de encontrar semelhanças no mundo real? Bastava apenas aceitar que explicações, no caso deles, eram extremamente dispensáveis, pois, quem faz rir merece reverência, não questionamentos. Ali era a arte a serviço da espontaneidade que sempre arrancou de plateias ao redor do planeta a graça de esquecer, mesmo por tão pouco tempo, a sisudez do cotidiano. Mas isso faz tempo, infelizmente.
Na última década, uma arte chamada pop tratou de – em nome do lucro, naturalmente – aproximar a ternura do sinistro. As caravanas circenses pelo interior do Brasil começaram a rarear e a multimídia (cinema, televisão, internet …), a cair como abutre sobre essa figura que nasceu sob o signo da alegria. Apropriaram-se da maquiagem, tornando-a assustadora, e tomaram de assalto a alma dos palhaços, transformando-os em criaturas a serviço, no mínimo, do medo. Pela soberana vontade da indústria cinematográfica, sobretudo, eles passavam a ser definitivamente incorporados ao universo no qual grassam figuras mórbidas como zumbis, vampiros e outros matadores de além-túmulo. Nada que a telona já não tentasse há décadas, desde que descobriu na história do artista francês Jean-Gaspard Deburau um bom roteiro. Em 1836, vestido de pierrô, ele atingiu um garoto na cabeça com sua pesada bengala e matou-o, segundo apurou-se, porque a criança o teria insultado. Mas filão mesmo seria a vida do serial killer norte-americano Wayne Gacy Jr, que passou a ser conhecido como Palhaço Assassino pelos ataques sexuais cometidos contra adolescentes, na década de 1960. Ao todo, 33 vítimas e quatro filmes dedicados às atrocidades cometidas por ele.
Ah, sim: Hollywood (e a literatura, não esquecendo) tem uma culpa enorme em tudo isso, muito maior do que a vida real, diga-se, sobretudo em tempos recentes quando o que se filmou e escreveu andou inspirando criminosos ou brincadeiras de mau gosto, mundo afora. Uma verdadeira dor de cabeça para a polícia, com casos de pessoas caracterizadas de palhaço cometendo crimes ou pregando sustos em muitos lugares do planeta, quase que simultaneamente. Prato cheio para o fortalecimento de um medo que a ciência denominou de coulrofobia. O resultado da soma de tantos episódios é uma desconfiança de tamanho compatível com a apropriação lamentável da personagem e o distanciamento da essência dela: matar, mas de rir – o que será, para sempre, a melhor coisa. Diante de tantas consequências para o ofício, palhaços que ganham a vida divertindo vêm protestando de forma solitária, em pequenos grupos, pelas ruas de cidades grandes como Porto Alegre. Deveriam ter o apoio da população, porque não é justo perder, além do encanto, a única forma de sobrevivência.
Não poderia ser o medo a substituir a poesia e a graça dos palhaços, tal como era quando se viam como operários de lembranças inestimáveis que só o circo e a alegria deles conseguem propiciar. Alguém que faz o mal vestido como um, deveria, por isso, receber punição diferenciada: ao menos a de se vir obrigado a aprender o ofício e, durante bom tempo, divertir (sem remuneração) crianças sem acesso à cultura. Talvez aprendessem o valor dessa arte, tão claro para pessoas de alma generosa como foi, por exemplo, o ator Domingos Montagner, que deveu grande parte do seu mérito profissional à arte praticada nos picadeiros. Quando perguntado, em 2013, sobre a forma como gostaria de ser lembrado, respondeu: “Como um bom palhaço”.