Enquanto no Ocidente é tempo de consumir, em nome do Natal, moradores de Aleppo perdem até a cidade onde vivem.
Luce Pereira (texto)
Stringer/AFP (foto)
em uma parte do mundo, os horrores da guerra transformaram o Natal, para uma minoria cristã perseguida, numa lembrança distante. Em lugar do som das orações ditas em voz muito baixa, o escarcéu de aviões que bombardeiam e de metralhadoras que não param de destruir. Nem mesmo a casa onde essas famílias sentaram-se à mesa para celebrar suas pequenas conquistas existe mais. Acabam de perder até a cidade na qual passaram suas vidas – Aleppo, na Síria, país que há mais de seis anos despediu-se da paz e da perspectiva de futuro. Na segunda maior cidade, os civis estão sendo levados para longe do que sempre lhes pertenceu. Obedecem apenas porque perderam todos os direitos, inclusive o de escolher o próprio destino, porém declaram um sentimento que é de todos: “Vamos apenas com o nosso corpo, mas nossa alma ficará, pendente, em Aleppo”, disse o fotógrafo Ahmad Mohsin Morjan, 24, em entrevista. Na última terça-feira, a artilharia russa e iraniana ajudou o ditador Bashar Al-Assad a vencer os rebeldes e assim juntaram-se a Cruz Vermelha e o Crescente Vermelho Árabe Sírio na retirada da população, enquanto Assad cantava vitória. Se é que se pode falar em vitória num lugar em que praticamente não restou pedra sobre pedra.
Há que ter a humanidade em níveis críticos para não se incomodar minimamente com a situação da Síria, ainda mais quando o Ocidente se esforça todos os dias para transformar o Natal em um espetáculo de excessos que salta aos olhos, mesmo em países nos quais a situação econômica anda muito mal das pernas. Mas aqui não cabe qualquer surpresa: onde a cultura é vista como perigo ou com indiferença, o consumo anestesia e a visão dos direitos humanos fica turva. No entanto, seja qual for o estágio em que se encontre o descompromisso com o que extrapola nossa realidade pura e simples, fazer vistas grossas ao cúmulo do sofrimento é admitir-se um ser humano de qualidade questionável, incapaz de se imaginar no lugar do outro. E convenhamos que o mundo precisa cada vez menos de pessoas impossibilitadas de enxergar noutra direção a não ser a do próprio umbigo.
Em Aleppo, sobretudo antes da decisão de retirar os moradores, um drama humano quase impossível de ser traduzido ganhou espaço na mídia mundial: líderes religiosos vinham permitindo a execução de familiares ou o suicídio de mulheres para que elas não fossem estupradas por membros do regime militar do ditador. Na manhã do cerco em que as forças pró-Assad invadiram a cidade, 20 delas, segundo o Conselho Consultivo da Frente Levante, se mataram temendo serem molestadas sexualmente. “Não há armas nem homens que possam ficar entre nós e os animais que estão prestes a vir”, escreveu uma professora em uma carta, antes de dar fim à própria vida. Pelo menos 40 ônibus e ambulâncias foram usados para recolher os primeiros quatro mil que iriam para o Oeste de Aleppo, incluindo 108 feridos, mas nem mesmo a operação dava a eles segurança sobre se chegariam vivos ao destino. Pouco antes de ser iniciado o transporte, franco-atiradores dispararam contra um caminhão com voluntários fazendo um morto e eu ferido. “Nós podemos ser assassinados a qualquer momento”, disse o fotógrafo Morjan, citado no início do texto.
Se mesmo com tudo isso, praticamente às vésperas do Natal, a situação na Síria não produzir nem mesmo reflexões sobre como o mundo avança para o abismo, é porque já abandonamos pelo caminho a verdadeira solidariedade e passamos a discordar de uma das frases mais lúcidas do francês Jean-Paul Sartre, concebida quase como se o filósofo estivesse na frente de um Bashar Al-Assad vestido em ternos caríssimos e dono de fortuna incalculável: “Quando os ricos fazem a guerra, são sempre os pobres que morrem”.