Uma mensagem de Natal e Ano Novo a partir de uma citação do livro “É isto um homem?”, de Primo Levi.
Urariano Mota (texto)
Greg (arte)
Começo por uma citação do magnífico livro “É isto um homem?” de Primo Levi, quando ele recorda um campo de concentração nazista:
“Steinlauf me vê, me saúda, e, sem rodeios, me pergunta, severamente, por que não me lavo.
E por que deveria me lavar? Me sentiria melhor do que estou me sentindo? Alguém gostaria mais de mim? Viveria um dia, uma hora a mais? Pelo contrário, eu viveria menos, porque lavar-se dá trabalho, é um desperdício de energia e de calor. Será que Steinlauf não sabe que bastará meia hora entre os sacos de carvão para acabar com qualquer diferença entre nós dois? Quanto mais penso nisso, mais acho que lavar a cara em nossa situação é tolice, futilidade até; hábito automático ou, pior, lúgubre repetição de um ritual já extinto. Vamos morrer, todos; estamos para morrer; se é que me sobram dez minutos entre a alvorada e o trabalho, quero destiná-los a outra coisa, a fechar-me dentro de mim mesmo, a fazer o balanço da minha vida, ou talvez a olhar para o céu e a pensar que talvez eu o veja pela última vez; ou a me deixar viver, apenas, permitir-me o luxo de um brevíssima folga.
Steinlauf, porém, passa-me uma descompostura. Terminou de se lavar, está se secando com o casaco de lona que antes segurava, enrolado, entre os joelhos e que logo vestirá, e, sem interromper a operação, me dá uma preleção em regra:
‘Justamente porque o Campo (de concentração nazista) é uma grande engrenagem para nos transformar em animais, não devemos nos transformar em animais. Até num lugar como este pode-se sobreviver, para relatar a verdade, para dar nosso depoimento. E, para viver, é essencial esforçar-nos por salvar ao menos a estrutura, a forma da civilização. Sim, somos escravos, despojados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria, destinados a uma morte quase certa, mas ainda nos resta uma opção. Devemos nos esforçar por defendê-la a todo custo, justamente porque é a última: a opção de recusar nosso consentimento. Portanto, devemos nos lavar, sim, ainda que sem sabão, com essa água suja e usando o casaco como toalha. Devemos engraxar os sapatos, não porque assim reza o regulamento, e sim por dignidade e decência. Devemos marchar eretos, sem arrastar os pés, não em homenagem à disciplina prussiana, e sim para continuarmos vivos, para não começarmos a morrer’”.
A essa grande página junto outra do jornal O Bocão, do nosso amigo Mário Sapo, que o registro civil chama de José Amaro Correia. Ele está cego, num cadeira de rodas, e nos envia esta mensagem ditada para o seu jornal:
“NOSSA TERRA TEM COMETA
No dia em que a sonda robô pousou no cometa, depois de 10 anos, 8 meses e 11 dias de viagem, abriu-se um nova mensagem da ciência. Foi uma das maiores realizações na pesquisa espacial. Eram quatro horas da manhã, e até as cinco, durante uma hora, ouvíamos o mesmo som que os cientistas ouviram vindo do cometa.
Depois de alguns dias estudando os sons, entendemos o cometa que passava pelo alto das praias de Paulista. A mensagem, que também ouvi de madrugada, era:
O cometa estava desejando um bom natal e um novo ano de solidariedade e amizade.
A mensagem foi dirigida para os leitores do Bocão: para os moradores de Paulista, de Pernambuco, do Brasil e todos moradores da terra”.
Que bonito, não é? Se o nosso amigo, do alto da sua esperança e padecendo de males que a outro homem deixariam deprimido, se ele nos envia tais palavras, somente podemos nos sentir pequenininhos e medíocres, de tão reclamões e mal humorados que somos, tendo muito mais que ele, pelo menos na aparência. Então, que recebamos com admiração e proveito as suas palavras de alento e esperança. Aguardemos um novo ano, sempre o próximo, de solidariedade, porque meu amigo Mário já ouviu na esperança o que ainda não vimos:
“O cometa estava desejando um bom natal e um novo ano de solidariedade e amizade.
A mensagem foi dirigida para os leitores do Bocão: para os moradores de Paulista, de Pernambuco, do Brasil e todos moradores da terra”.
O que traduzo assim, neste final de ano. Tudo passa, até a dor que um dia talvez a gente consiga expressar. Se até os cometas falam, por que iremos escolher o silêncio? Que venha 2017.