Principais causas que levam pessoas a morar na rua: conflitos familiares, desemprego e fracasso escolar.
Vandeck Santiago (texto)
Juliana Leitão (foto)
Entre os dramas que diariamente acontecem no mundo, o noticiário de ontem trouxe um que particularmente nos chama a atenção. Não o do embaixador russo morto a tiro na Turquia, quando visitava uma exposição numa galeria de arte – chocante pela imagem que correu o mundo, mostrando o embaixador caído no chão e o atirador ao seu lado, de arma em punho. Também não o do motorista que invadiu com um caminhão feira natalina em Berlim, e que matou pelo menos nove pessoas e deixou 50 feridas, segundo dados divulgados no momento em que escrevo. Esse dois casos são impactantes e reveladores de como a qualquer momento, em algum lugar do mundo, uma tragédia pode acontecer.
Mas o drama do qual queremos falar não é este; é o da luta de um morador de rua em Fortaleza para evitar que sua mulher fosse enterrada como indigente. Ele, de nome Cláudio Oliveira, 48 anos; ela, Ana Paula, 51. Ambos alcoólatras. Viveram juntos na rua durante 22 anos na capital cearense, informa matéria da BBC. Moraram em oito praças e criaram quatro cachorros. Um dia, Ana Paula desapareceu. Na situação em que eles viviam, tentar o contato com familiares ou fazer buscas via telefone estava fora de cogitação, porque nem uma coisa nem outra era algo que fizesse parte direta de suas vidas.
Ele fez o que estava ao seu alcance: começou a procurar a mulher em hospitais, abrigos e praças. Acabou descobrindo que ela morrera em um hospital da cidade, mas quando chegou lá o corpo já havia sido encaminhado para o IML (Instituto Médico Legal). Não se sabe do que ela morreu; o atestado de óbito afirma “causa a esclarecer”. Cláudio não pôde ver o corpo, porque não possuía documentação comprovando que era de fato o companheiro dela. Em cinco dias seria enterrado – foi o prazo que ele teve para provar que era o marido dela e impedir que a mulher fosse enterrada como indigente. Uma assistente social o ajudou. Exames de impressões digitais e de DNA comprovaram que a falecida era quem Cláudio dizia ser – com um pequeno detalhe: ela não se chamava Ana Paula, e sim Maria Emília (ela provavelmente adotara o outro nome ao ir morar na rua). Localizaram até uma filha dela, que ajudou no reconhecimento mas não quis ter nenhum envolvimento com o enterro.
O final da história é que Cláudio acabou conseguindo que a mulher não fosse enterrada como indigente. “Sinto muita falta dela. Pegamos chuva, estrada, passamos fome, fomos humilhados. Até hoje eu sonho com ela”, disse ele à BBC. “Eu cuidava dela, a gente ia se cuidando. Todo dia penso na Ana Paula, não é fácil perder o amor da gente”.
Cláudio e Ana Paula/Maria Emília são personagens de uma população que a quase totalidade de nós faz que não vê – por diversos motivos, entre os quais o de considerar que a vida deles se deteriorou a tal ponto que não está ao nosso alcance reverter o processo. No máximo, oferecer alguma ajuda, roupas, dinheiro, um pouco de comida. Trata-se de um problema que cabe ao Estado procurar resolver, ou pelo menos atenuar – mas, mesmo aí, a mobilização da sociedade para pressionar o Estado a cumprir essa tarefa é quase inexistente, salvo ações de entidades ligadas exclusivamente ao assunto. Os moradores de rua são seres invisíveis, sem força para atrair o senso de urgência que faz as pessoas e autoridades agirem no sentido de buscar soluções.
O total de brasileiros nessa situação é uma incógnita. Os números variam. Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), eles somam pouco mais de 100 mil, em todo o país. Entidades que lidam com essa faixa da população consideram, porém, que são muito mais. Afirmam que a estatística do Ipea contabiliza apenas os moradores alcançados pela assistência e os que moram nas vias mais movimentadas, como praças. A estimativa dessas organizações é que existem pelo menos 400 mil moradores de rua no Brasil.
As principais causas que levam pessoas a tornarem-se moradores de rua são conflitos familiares, desemprego e fracasso escolar, diz em entrevista ao jornal Gazeta do Povo (PR) o doutor em Sociologia Lindomar Boneti, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), autor de um estudo inédito sobre o tema e que virou livro ano passado, Ocupação do Espaço Público na Condição de Pobreza, publicado pela editora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Os fatos, segundo ele, costumam estar interligados: “Por exemplo, o pai perde o emprego, começa a beber e a bater nos filhos. O que acontece é os filhos irem para as ruas por não suportarem mais viver na família”. Um trauma, um fato desagradável marcante, é o detonador da decisão.
No caso de Cláudio Oliveira, o homem que evitou que a mulher fosse enterrada como indigente, o trauma vem desde cedo: “Minha infância foi uma porcaria. Minha mãe me batia, não gostava da minha cor, morreu impedindo que a chamasse de mãe”. Talvez amanhã eu e vocês que estão lendo este artigo já nem nos lembremos mais dele. Mas ele e o seu sofrimento terão existido – e, mesmo invisíveis, farão parte de tudo isso que chamamos humanidade.