Amanhã faz dois anos que a França viveu seu primeiro grande choque, em 2015: o ataque ao Charlie Hebdo.
Luce Pereira (texto)
Greg (arte)
Pode ter certeza: eu, também, se pudesse não falaria em violência, pelo simples fato de apenas a palavra já causar desconforto sem tamanho. Se dispusesse de um meio, trataria de ignorá-la solenemente, no entanto, ninguém consegue fazer vistas grossas àquilo que bate à porta ou espera do lado de fora de casa, na próxima esquina, ameaçando o maior patrimônio – a vida. Agora, ao que a rotina leva a crer, ela se transformou em uma sombra sobre o mundo e tornou o medo um componente do dia, como se fosse natural incorporá-lo, trazê-lo feito se arrasta uma bola de ferro presa à perna – e sem reclamar. A escravidão, afinal, serve a senhores de muitas espécies e há cativos crônicos que se acostumam a cumprir a vida como se fora uma sentença.
Mas, “deixando a profundidade de lado”, como já propôs em música o sumido e inteligente cantor/compositor Belchior, a violência dói até na memória. Doem, ainda hoje, as grandes feridas deixadas por ela, nos últimos tempos, como a soma dos sangrentos atentatos terroristas pelo mundo afora. Amanhã fará dois anos que o planeta se viu, uma vez mais, estarrecido diante da barbárie e do destemor com que se repete. Era para ter a energia leve de um recém-findado Dia de Reis, mesmo entre povos que não se sensibilizam com as celebrações do ciclo natalino, porém Paris nunca mais seria a mesma depois daquele 7 de janeiro, com o atentado à redação do jornal satírico Charlie Hebdo.
A quinta-feira escolhida pelos irmãos Said e Chérif Kouachi para tornar indelével a terrível marca do Estado Islâmico em solo francês teria como saldo doze mortos e cinco feridos graves, além de uma nação profundamente abalada pela ideia de perder-se da paz. Vestidos de preto e armados com fuzis Kalashnikov, entraram atirando em todos e saíram movidos pela mesma violência, atingindo dois agentes da polícia nacional e mais 11 pessoas que se encontravam próximas ao prédio. O ataque teria ocorrido, supostamente, como vingança pela edição na qual o profeta Maomé aparecia, na capa, sendo humilhado e ridicularizado. Os muçulmanos haviam reagido com indignação e revolta ante a publicação e a partir dali muito mais sangue jorraria: o massacre de Nice, em 16 de julho, quando um caminhão dirigido pelo terrorista franco-tunisiano Mohamed Lahouaiej Bouhlel invadiu o passeio onde milhares comemoravam o Dia da Bastilha (84 mortos) e a investida contra a casa de shows Bataclan (mais de cem mortos), em 13 de novembro. Sem contabilizar outros episódios de menor porte registrados em várias regiões do país, pelo que se imagina, em decorrência das operações militares da França no Oriente Médio.
Nem bem a memória relaxa, novas e graves ocorrências impactam o planeta, como a mais recente, em Istambul (Turquia), durante a virada do ano. Outras 39 pessoas morreram e 69 ficaram feridas no ataque do Estado Islâmico à boate Reina, na noite do Réveillon. Ontem, na cidade turca de Izmir, um carro-bomba explodiu e deixou dois mortos – isto falando apenas da violência praticada pelo terrorismo. Quanto à nossa de cada dia, é crucial, a partir da mais ampla reflexão, descobrir por que ela conseguiu transformar o país numa espécie de “salve-se quem puder”. Geralmente, o mal se esconde por trás da indiferença e da apatia com que os habitantes permitem ao poder público seguir como se não tivesse a responsabilidade que tem sobre tanta impunidade. Geralmente, também, exames de consciência e mãos à palmatória não fazem parte de sociedades que costumam se eximir de qualquer obrigação com problemas do interesse de todos. Cada um por si, como na selva, e então não há muito do que se queixar. No Brasil, indignar-se, além de ser cômodo, é muito pouco, porque o que modifica realidades não são palavras e sentimentos, mas exemplos e gestos. Se nos incomoda tanto falar e ouvir sobre violência, que mudemos as armas para combatê-la. A maior entre todas é, sem dúvida, o conjunto de pilares que sustenta a cultura da paz.