Com a partida de Zygmunt Bauman, o mundo perde um dos seus mais competentes intérpretes.
Fellipe Torres (texto)
Samuca (arte)
Um dos mais celebrados pensadores sociais da contemporaneidade, o filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman viveu o suficiente para testemunhar vários “arranjos sociais”, como afirmava. Quanto mais envelhecia, notava o aumento gradual de velocidade com a qual a sociedade se transformava. Tudo parecia ser criado para durar para sempre – movimentos políticos, instituições, empresas, modas -, mas cada um desses “arranjos” se tornava mais efêmero. Em tom de brincadeira com a própria idade avançada, o intelectual dizia ter sido ele, até então, a “entidade mais eterna”. Ontem, aos 91 anos, o professor emérito das universidades de Leeds e Varsóvia morreu em casa, cercado de familiares.
Grande parte do pensamento de Bauman se conecta por meio da teoria da “modernidade líquida”, criada por ele na virada do século – um assumido crítico da “ideologia” arraigada na pós-modernidade”. A metáfora dialoga com as mudanças recorrentes na sociedade: tudo é fluido, adaptável, “escorre pelas mãos”. Os relacionamentos amorosos não são feitos para durar – uns parceiros substituem qualidade por quantidade, enquanto outros mantém relações frouxas, em consonância com a intensa individualização das pessoas. A busca pela felicidade, por exemplo, passa a ser um caminho trilhado por conta própria. Não raro, esse movimento envolve a aquisição de bens de consumo e o rápido descarte frente à uma suposta obsolescência.
Nos mais de 40 livros publicados no Brasil, Bauman analisa a pressa com a qual somos impelidos a viver no cotidiano, como se fosse possível esticar o tempo e obter mais prazer em menos tempo. Da correria, no entanto, surge um vazio. Momentos livres são preenchidos pela maior quantidade possível de estímulos visuais, tecnológicos, sonoros – e, na falta deles, sentimos tédio. Não há espaço para questionamentos, reflexões… para uma vida off-line, enfim.
Ao mesmo tempo, fenômenos vazios de sentido se intensificam, como o culto desmedido a celebridades e uma incessante busca por um corpo perfeito – de acordo com padrões questionáveis. Como se vivêssemos uma doença coletiva, cresce exponencialmente o uso de medicações como ansiolíticos e antidepressivos, com frequência decorrentes da intolerância ao sofrimento e não de enfermidades mentais.
Com a partida de Zygmunt Bauman, o mundo perde um dos seus mais competentes intérpretes, capaz de analisar fenômenos sociais quase em tempo real e despejar no mercado editorial um generoso volume de obras sintonizadas com os nossos dias. Ainda este mês, a editora Zahar publica no Brasil o livro Estranhos à nossa porta, com reflexões do polonês sobre a crise migratória na Europa.