Mundo se curva à importância da obra e coloca a autora, falecida há 40 anos, entre as maiores do século 20.
Luce Pereira (texto)
arte sobre foto da internet (ilustração)
Se alguém disser que nunca leu nada a respeito da escritora francesa Anaïs Nin ou nunca viu qualquer filme baseado nas experiências pessoais dela, não sei se digo “sinto muito” ou “não perca mais tempo”. Os dois, provavelmente, porque começar esta viagem apenas agora já é em si algo que merece ser lamentado. Ela se foi há 40 anos (14 de janeiro de 1977), num dia como hoje, mas deixou uma trajetória incomum, que poucas mulheres ousariam viver em uma sociedade e um tempo nada habituados a olhar com simpatia para pessoas ousadas, decididas a viver plenamente o que os sentidos ditassem. Sem medo, sem culpa, sem sossego. Anaïs, nascida Angela Anaïs Juana Antolina Rosa Edelmira Nin y Culmel, era filha do compositor Joaquin Nin, cubano criado na Espanha e da dançarina Rosa Culmell y Vigaraud, de origens cubana, francesa e dinamarquesa. Ainda na infância acostumou-se a acompanhar o pai por excursões pela Europa e então, naturalmente, desde cedo, tornou-se cosmopolita, aprendeu a enxergar no mundo um lugar onde cabem todas as possibilidades, inclusive a de amar sem limite nem preconceito. E ela foi, essencialmente, uma mulher que amou. Uma mulher, por assim dizer. Intensa e rara.
A não ser que o senhor ou a senhora não ache qualquer virtude em alguém viver sua essência sem reservas, vai discordar do fato de ela realmente ter sido uma pessoa à frente do tempo. Aos 11 anos, com os pais separados e indo na companhia da mãe e dos dois irmãos viver em Nova York começou a construir sentimentos e sensações que dariam origem aos seus diários e estes, a livros que conquistariam o mundo inteiro. Não seriam relatos de uma mocinha comum da época, em torno de paixões previsíveis, vividas de maneira mais previsível ainda. Seria, sim, o resultado de uma vocação feroz para traduzir de maneira visceral o desejo e todos os caminhos que levam a ele. Aos 20 anos (1923) voltou à Europa (depois alternando idas e vindas aos EUA, onde morreu) e começou a escrever crítica, ensaio, ficção, além do diário, continuado ininterruptamente na vida adulta, que resultou em dezenas de volumes. As páginas se transformaram em obra considerada uma das mais importantes em termos literário, psicanalítico e antropológico do século 20. Apesar de em 1937 o escritor e amante, Henry Miller, já ter chamado a atenção para o valor dos textos biográficos em um artigo na revista inglesa Criterion, o primeiro volume dos diários, The diary of Anaïs Nin (1931-1934), só foi publicado em 1966, quando o mundo clamava por liberdade sexual.
Era o que Anaïs pregava com sua escrita e suas relações pessoais vividas intensamente e sem esforço para preservá-las de opiniões preconceituosas. Mesmo casada com Hugh Parker Guiler, casou-se com Rupert Pole, em Nova York (1947), foi amante do autor de O trópico de Câncer, Henry Miller – obra que prefaciou – e apaixonada pela mulher dele, June – triângulo amoroso magistralmente contado no livro que virou filme, Henry e June. Para ela, não tinha importância se desafiava os limites sociais da sexualidade ou das relações interpessoais. Na verdade, sentia-se confortável em romper com aqueles cânones, incluindo o papel da mulher. Ser dona de uma escrita libertina que a tornava ícone da literatura erótica era sua maneira de estar no mundo, de dar voz ao feminino que pulsava nela incessantemente.
Por cuidado, por amor, só permitiu que um de seus diários fossem publicados após a morte do marido legítimo (já que houve a anulação do casamento com Rupert Pole), o primeiro. “Não vemos as coisas como elas são, as vemos como nós somos”, escreveu, certa vez, para não deixar dúvida sobre a forma como enxergava a vida – a partir dela mesma, de suas experiências, da dor e do prazer extraídos de cada um. Para quem ainda não pegou o mesmo trem em que viaja a extrema sensibilidade de Anaïs Nin, aconselho que comece pelo livro Delta de Vênus (1960) ou mesmo pelo filme Henri e June. São lições de liberdade e de amor pela vida que se escolhe viver, com a consciência de que é única.