Sozinha e triste, idosa foi resgatada por parentes aos 80 anos e volta a estampar felicidade no rosto.
Marcionila Teixeira (texto)
Arquivo pessoal (foto)
Aos 80 anos, pensamentos sobre morte rondavam a cabeça repleta de fios brancos de Ester. Um dia, passou a questionar a continuidade da própria vida. Afirmava só dar trabalho. Chegou a desejar morrer para encerrar um ciclo de tristeza sem fim. Pouco a pouco, Ester se enclausurava na própria infelicidade. Já não cuidava mais de si própria. As unhas andavam até grandes. Estava sozinha, mesmo quando acompanhada. Em seus pensamentos. Na vida.
Ester Araújo dos Santos é a mais nova de uma prole de seis irmãos. Na juventude, foi quem mais sofreu com a pobreza familiar, agravada pela morte do pai, um comissário de polícia. Nos dias difíceis, acompanhou a luta da mãe, coberta por um pó preto, para vender carvão no quintal da casa. Com o passar dos anos, Ester testemunhou a saída dos cinco irmãos e irmãs de casa. Até que um dia foi sua vez de partir e deixar a velha companheira. Aos 42, casou com um homem bem mais velho, morto seis anos depois.
Ester nunca teve filhos. Ajudou a criar os rebentos das irmãs. Após a morte do marido, ficou só. Em tese, era a pessoa da família mais indicada para voltar a conviver com a mãe, já muito velha, encerrada em uma cama e com a fala silenciada. Cuidou da idosa com uma dedicação comovente. O tempo passou, a mãe partiu e Ester voltou à sua solidão.
A velhice ainda lhe “presenteou” com uma artrose avançada, daquelas que tiram o movimento, o contato com a rua – por menor que ele seja – com os poucos amigos.
Kátia Regina de Araújo Silva, 53 anos, engenheira química e sobrinha de Ester, e o marido, Miguel Bourbon Vilaça, 62, analista de sistemas, acompanharam de perto a decadência da parente. Eram as pessoas mais presentes nas visitas aquele imóvel simples, em Casa Amarela.
Perceberam o telhado caindo pela ação dos cupins, a tristeza acumulada, a solidão. Abraçaram aquele corpo acabado como quem abraça um filho amado. Levaram Ester para casa. Mesmo a contragosto da velha tia. E fizeram uma revolução. Na vida da idosa. Na própria existência.
Aos 82 anos, os pensamentos de Ester esqueceram da morte. Saltam entre o banho de mar aos domingos e o manuseio em seus livros de pintura. A vida da idosa ganhou cores, sol, companhia, carinho e uma família de verdade. Ester já não sente saudades da antiga casa. Conheceu lugares para onde nunca tinha ido. Como diz Miguel, “ela preencheu coluninhas do nunca fiz”. Foi a um parque, a um shopping, embarcou em viagens de carro e voltou a tomar banho de mar após passar 63 anos longe dele. “Todo domingo estou na praia. É muito bom. Tomo banho, faço amizades”, conta. “Ela ganhou objetivos na vida”, reflete Kátia. E isso tem mantido todos naquela casa ainda mais vivos. Kátia, o marido e as três filhas.
A revolução foi tamanha a ponto de estender seus tentáculos para outros membros da família, comovidos com a transformação da velha tia, e até para estranhos. Kátia costuma postar nas redes sociais a rotina de convivência com Ester e isso termina estimulando outras pessoas a tratarem bem seus idosos. Juntos, Kátia e Miguel dizem que a convivência com a tia os faz pensar mais sobre a própria velhice.
Como gostariam de ser tratados, como podem economizar para obter mais segurança quando esse momento chegar. Ao perder a mãe e grande companheira, Kátia descobriu as possibilidades de viver um grande amor ao lado da tia, irmã de sua mãe Raquel. Agora, segue com o marido e as filhas descortinando o verdadeiro milagre proporcionado por um abraço lá atrás, quando eles ainda não sabiam que tinham o poder de mudar vidas.