País celebra em 30 de janeiro um sentimento que, de tão íntimo de todos nós, parece invenção dos portugueses
Luce Pereira (texto)
Jarbas (arte)
A História construída pelos navegadores portugueses costuma ser contada apenas pelo viés das conquistas, não diz que além de terras eles acabaram descobrindo, também, uma palavra tão bonita quanto dolorosa – saudade. Aqui, distantes do lugar onde nasceram e dos entes queridos, ora sentiam-se melancólicos, ora vazios, ora tomados por uma falta avassaladora ou uma nostalgia indescritível. Tinha que existir um termo que exprimisse exatamente aquele turbilhão de sentimentos e que depois pudesse ganhar vida através da poesia e de outras formas de expressão. A propósito, coube aos poetas carregar este estandarte através dos séculos, dando à palavra uma roupagem de nobreza difícil de ser vista em outros idiomas. Ao contrário do que se repete por aí, não é propriedade exclusiva do português – porque existem termos similares nas línguas inglesa, espanhola, polonesa e alemã, por exemplo – mas não há quem se aventure a negar a maestria do povo luso no uso dela. Origina-se do latim solitas (solidão), porém, aqui, extrapolou as fronteiras dos sentimentos mais doídos para se transformar quase em atributo: aquele que sente saudade se apresenta aos olhos do mundo como sensível, humano, bom.
E porque acabou reverenciada por tantos quantos têm sensibilidade à flor da pele, 30 de janeiro passou a ser o Dia da Saudade. Palavra misteriosa e intensa, quase uma instituição. Diz-se que a empresa britânica Today Translations chegou a ouvir vários tradutores e o resultado foi que seria a sétima mais difícil de traduzir, pela quantidade de sentimentos que envolve, embora quase todos convirjam para uma direção – falta. Falta de pessoas, de objetos, de momentos, até mesmo de situações nunca vividas. No terreno da subjetividade onde pisam bem escritores e poetas, esses logo se encarregaram de colocá-la a serviço do amor. Saudade como condenação pela falta que o outro faz, estando neste mundo ou no outro (se houver). Saudade como preço pago por deslizes ou erros; saudade como autoflagelação pelo que não pode mais ser resgatado. “Na solidão na penumbra do amanhecer/ Via você na noite, nas estrelas, nos planetas,/ nos mares, no brilho do sol e no anoitecer/ Via você no ontem, no hoje, no amanhã …/ Mas não via você no momento / Que saudade …” , escreveu Mário Quintana, dos mais festejados poetas brasileiros pela doçura que revestiu cada um dos seus versos.
Independentemente das investigações científicas para descobrir o fator desencadeante do sentimento que a humanidade procura “matar” com mais urgência e a todo custo, saudade é algo que de um momento para outro vai surgir no caminho e levar a reflexões e atitudes quase sempre pouco confortáveis. No entanto, ensinam os filósofos, as lições deixadas por ela são tão valiosas quanto as deixadas pelos tropeços. Aprende-se com ambos – professores duros, mas decisivos para o amadurecimento. Não pareceria, pois, uma decisão acertada tentar evitá-la a qualquer preço, porque ela sempre baterá à porta, como se fizesse parte da condição humana, como se fosse parte do preço por existir.
Saudade, então, representaria fatum, destino, aquilo de que se impregnou o fado português de Amália (“Numa angústia, uma ansiedade/ Minha canção é saudade/ Do amor sonhado em vão) e a poesia indizível de Fernando Pessoa (“Um dia a maioria de nós irá se separar/ Sentiremos saudades de todas as conversas jogadas fora/ das descobertas que fizemos/ dos sonhos que tivemos/ dos tantos risos e momentos que compartilhamos/Saudades até dos momentos de lágrima/ da angústia, das vésperas de finais de semana/ de finais de ano, enfim … do companheirismo vivido (…)”. Portanto, neste dia 30, o melhor que todos fazemos é, mais do que nos reconciliarmos com ela, darmos viva. Saudade é coisa de quem se entrega à vida sem medo, embora tenha “gosto de jiló verdinho”, como escreveu o compositor caruaruense Luiz Vieira, em Guarânia da lua nova.