01.02

 

Decreto vetando a entrada no país de refugiados sírios e de muçulmanos de sete países produziu reação em bloco.

Luce Pereira (texto)
Greg (arte)

Menos de 15 dias de mandato e é muito provável que você, como milhões de pessoas ao redor do planeta, já não esteja suportando nem ouvir falar no novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, nome associado a medidas impossíveis de serem imaginadas até pelo profeta mais certeiro ou pelo vidente de maior crédito. Ele parece considerar o país como o centro de todas as importâncias e os demais, nações que apenas orbitam em torno dos interesses norte-americanos. Tem-se a nítida impressão de que Trump imagina os EUA vivendo em uma redoma, sem depender de nada nem ninguém e sem encontrar pela frente qualquer obstáculo à sua supremacia absoluta. Mas não é bem assim, afinal, vive-se no século 21 e a saúde de todas as grandes economias é regida por regras que não se quebram com meia dúzia de canetadas. Do mesmo jeito que a diplomacia não pode ser vista como um acessório de uso limitado, só posto em prática quando o presidente estiver de bom humor e de muito boa vontade com o resto do mundo. Isso tem outro nome e se choca tanto com os valores nacionais mais caros que, ontem, até o ex-presidente Barack Obama rompeu o silêncio para criticar os excessos do sucessor.
A propósito, o mundo reagiu indignado e assombrado ante as tentativas de isolar o país, colocando ao redor dele muros físicos e ideológicos, quando a queda de fronteiras tão brutais parecia ter sido consumada depois de vir abaixo o último tijolo do muro de Berlim. Todos contra Trump, era a ideia que se tinha, tal o tamanho da resposta ao decreto pelo qual refugiados sírios e muçulmanos de sete países ficavam impedidos de entrar nos EUA, o que gerou protestos em ruas de várias cidades e transtornos em grandes aeroportos norte-americanos. Foi o suficiente para latinos e judeus se unirem a favor dos excluídos e a nata da economia subir nos saltos. Microsoft, Amazon e Expedia, as três maiores empresas de tecnologia de Seattle, deram as mãos ao procurador-geral de Washington, Bob Ferguson, em ações movidas contra o presidente e o nefasto decreto, ao mesmo tempo em que pesos-pesados de várias multinacionais (Netflix, Goldman Sachs, Ford Motor, Boeing, Nike, Starbucks …) se manifestavam com a mesma veemência através de mensagens ou de seus executivos.
Mas a grita geral foi muito além dessas contrariedades e atravessou o mar com força. O chefe do Conselho Europeu, Donald Tusk, definiu Trump como “ameaça externa” que pode significar a maior dor de cabeça para a União Europeia. Em carta dirigida a 28 países membros, Tusk colocou declarações e medidas do novo governo dos EUA ao lado de ameaças como a “assertividade chinesa, a agressividade russa e o islamismo radical”. Ou seja, a Europa, sem poder acreditar no que vê sair da Casa Branca, se prepara para garantir sua dignidade e união, tema de um encontro que governantes do continente terão em Malta, nesta sexta-feira. “Nunca, na história moderna dos Estados Unidos, houve um presidente menos qualificado e menos experiente nem com personalidade tão polêmica”, dizia o documento elaborado pela Direção Geral para Políticas Externas da UE, concluído três dias antes da posse do magnata, em 20 de janeiro.
Apenas dez dias separaram o ex-presidente Barack Obama da promessa que fez, na despedida da Casa Branca, de só romper o respeitoso silêncio depois da posse do sucessor se ele extrapolasse os limites, desrespeitando valores americanos. Juntou-se aos críticos, durante as manifestações contra o decreto, e estimulou a população a lutar sob o direito constitucional de ser ouvida pelos governantes. Diante de tantos distúrbios e temeridades, seria inevitável que o mundo passasse a se perguntar não o que levaria Donald Trump a agir como um presidente de verdade, mas até onde ele vai conseguir governar sem apoio nenhum do mundo e esmigalhando com esmero a construção mais cara aos americanos – a democracia. No entanto, aqui, como em qualquer outro cenário, o feitiço também pode se voltar contra o feiticeiro.