03.02

 

Vinte anos após a morte do cantor, Mangue Beat continua influenciando artistas de vários estilos e tendências.

Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)

O carnaval de 1997, em Olinda, acabou bem antes da quarta ingrata. No início da noite de domingo, para ser mais precisa, após espalhar-se pelo país a notícia de que o cantor/compositor Chico Science havia morrido vítima de um acidente com o carro no qual estava, sozinho, indo do Recife para as ladeiras da Marim. Foi um choque. Uma tristeza monumental tomou conta dos foliões e as homenagens se multiplicaram, embora doídas. Vinte anos depois e já tão perto de mais um reinado de Momo, o artista poderia ser somente mais um na lista dos grandes que partiram, mas a força do legado não permite. O homem que conseguiu misturar elementos da cultura recifense com o que de mais universal e futurista existia na música feita no mundo, segue morando no imaginário popular como se fosse um daqueles mitos lapidados pelo tempo. No entanto, surpreendentemente, só há dois anos o Brasil e países que respiram som de altíssima qualidade, como os EUA, haviam começado a prestar atenção no trabalho revolucionário feito por ele e a banda Nação Zumbi, com a qual gravou os dois primeiros álbuns de sucesso retumbante – Da lama ao caos (1994) e Afrociberdelia (1996). Mais um pouco e poderia ter-se transformado em uma das maiores referências da música brasileira, embora o que deixou já seja suficiente para jamais ser esquecido.
Duas décadas depois e ainda inconformados que o mangue boy mais famoso tenha saído de cena com apenas 30 anos, na hora de alçar os voos mais altos, fãs ardorosos não conseguem não cair na tentação de imaginar como ele estaria, hoje. Numa carreira solo? Produzindo no ritmo da Nação Zumbi, que se prepara para lançar dois álbuns? As duas coisas, provavelmente, embora a Nação tenha dado reiteradas provas de que pode sobreviver bem, mesmo depois da lastimável perda do maior parceiro. Juntos, eram imbatíveis na arte de encantar com o filão que descobriram, mas, separadamente, têm luz própria, revelaram-se talentos dos mais promissores sem que um ofuscasse o valor dos demais. Supondo que seguissem caminhos diferentes, nada impediria que brilhassem à vontade, para a glória da música de Pernambuco, que com eles voltou a receber oxigênio extra, segundo se encarrega de mostrar, por exemplo, o documentário Chico Science – Um caranguejo elétrico (2016), do paulista Eduardo Miglioli, com roteiro do jornalista José Teles, feito para homenagear os 50 anos de nascimento do cantor.
Ali já se via claramente a importância de Chico Science a partir de declarações recheadas de elogios como as que deram artistas do quilate de Gilberto Gil e Arnaldo Antunes. Gil chegou a dizer, após o acidente, que considerava o movimento criado pelos pernambucanos uma das coisas mais importantes já ocorridas na MPB naquela década, porque Chico e a Nação conseguiram chegar a uma música vibrante, universal, facilmente assimilada por gente de vários sotaques. De fato, tanto que mereceu até virar livro, Do frevo ao mangue beat, escrito pelo próprio José Teles, observador de primeira hora dos passos dados pelo grupo.
Para quem respira música, em termos profissionais ou como fã desvelado, a obra do homem que “ligou o mangue ao mundo e o mundo ao Brasil” continua influenciando a olhos vistos, pois as inovações e os experimentos para se chegar a uma receita surpreendente como foi aquela que originou o movimento criado por Chico e a Nação Zumbi são notadas em vários estilos, do sertanejo ao pop. Ele vive, também através do que revelam as tintas e traços firmes de grafiteiros urbanos, à vontade para retratá-lo de várias formas, com a liberdade que pregou em vida misturando o improvável e se revelando, nos temas das composições, uma espécie de profeta dos dias de hoje. Nunca a música dele foi tão atual e nunca aquela sabedoria “antenada” com o futuro fez tanta falta.