Pernambucano Marcelo Gomes leu manifesto em Berlim contra Temer e pediu apoio para a ameaçada Ancine.
Luce Pereira (texto)
Tobias Schwarz/AFP (foto)
No Brasil, a cultura sempre foi vista pela classe política como uma ameaça, porque mandatários sem compromisso com o aumento do nível de consciência da população acreditam ser essa indiferença a maior aliada dos desmandos que podem praticar. Naturalmente, quanto menos esclarecida for a sociedade, menos forte para reivindicar o bem coletivo e mais incapaz de se insurgir contra a corrupção, o maior da galeria dos vilões nacionais. Significa dizer que numa época em que grassam políticos incultos, de conduta e espírito público absolutamente duvidosos, a ordem – ainda que tácita – é minar as tentativas de manter de pé conquistas alcançadas a duras penas. Mas nem tudo é conformismo. No Berlinale – o respeitado festival de cinema de Berlim –, o cineasta pernambucano Marcelo Gomes foi o porta-voz de um recado da categoria, insatisfeita com o desmonte de políticas culturais que desde 2007 vêm projetando o Brasil internacionalmente, sobretudo na produção audiovisual.
Concorrendo ao Urso de Ouro com o filme Joaquim, Gomes leu um manifesto (em inglês) contra o presidente Michel Temer, durante a coletiva de imprensa – espécie de carta aberta onde os insatisfeitos externavam grande preocupação com os destinos do audiovisual brasileiro, uma vez que o apoio parece estar sendo retirado de forma vertiginosa e sem a menor cerimônia. Subscrito por cerca de 40 produtores, cineastas e atores do Brasil e de outras nacionalidades, o documento recebeu mais de 200 assinaturas colhidas mundo afora e fez uma defesa aberta da Agência Nacional do Cinema (Ancine), fortemente ameaçada pela política do atual governo. Em outras palavras, a menina dos olhos do segmento corre o risco de desaparecer depois de algumas canetadas e desculpas descabidas.
O medo da classe de que a Ancine vire apenas uma referência histórica para a cultura do país faz sentido, pois, segundo alertou o cineasta, dois dos quatro diretores da instituição estão em vias de se ser substituídos. Para bons entendedores, isto não deixa dúvidas sobre a previsão de mau tempo na Casa, com perspectivas de desmoronamento, o que representaria um desastre para quem acostumou-se a ver os excelentes resultados obtidos com as janelas abertas para o mundo, através das quais o planeta passou a enxergar a produção audiovisual brasileira, a partir de 2007. Basta dizer que, naquele ano, 27 filmes made in Brasil participaram de festivais internacionais como o Sundance, o de Rotterdam e o de Berlim. Ali, a Ancine já havia batalhado e conseguido que se transformasse em lei a proposta de os canais de TV a cabo exibirem 3h30 de programas brasileiros, sem falar na criação do Fundo Setorial do Audiovisual – uma linha de investimentos destinada a todos os produtos da área, independentemente da fase de elaboração em que estivessem.
Gomes fez menção a várias outras conquistas, mas reservou maior ênfase para o resultado delas: crescimento de 8,8% ao ano – maior do que aquele registrado em outros setores importantes como o de remédios, eletrônicos e informática –, com contribuição de 0,54% ao conjunto da economia do país. No entanto, o temor da classe artística é de que nem mesmo números tão positivos sejam suficientes para impedir o desmonte, pois estaria clara a intenção do atual governo de debilitar a cultura, atingindo-a onde se mostra mais pujante. Ao que parece, no entanto, as reações estão apenas começando e devem se alastrar por outros festivais e lugares ao alcance dos olhos e do julgamento do mundo. A ideia é expor Temer e suas intenções de ferir de morte um dos segmentos através dos quais o Brasil se mostra mais Brasil – aliado da diversidade e da pluralidade e sempre disposto a não esconder suas idiossincrasias, pois, afinal, são elas que fazem do povo brasileiro um dos mais interessantes do planeta.