No dia 17 de fevereiro fez 20 anos que o país se despediu de um dos seus intelectuais mais brilhantes e irreverentes.
Luce Pereira (texto)
Luzia Ferreira/Folhapress (foto)
Éverdade: nos primeiros tempos de Brasília, o cenário se mostrava outro, a conjuntura política conspirava a favor da cultura e quando se tratava do projeto de país – diferentemente de hoje – havia muito homens que pensavam grande. Um deles era o mineiro de Montes Claros Darcy Ribeiro, que, de tão múltiplo, carecia de um adjetivo no qual coubesse o resultado de sua “mania de fazimento”, através da qual tornou-se quase uma lenda entre os intelectuais e políticos brasileiros da época. Naturalmente, nunca descobriram o tal adjetivo que comportasse a dimensão humana e o tamanho do legado, porque tudo nele excedia, inclusive o entusiasmo pela vida. Morreu há 20 anos, naquele 17 de fevereiro, mas só fisicamente, ao menos para uma legião de admiradores da obra e do espírito livre, que não abriria mão da leveza nem diante do desfecho capital.
Em 1995, fugiu da UTI do Samaritano (RJ) onde estava internado há 21 dias para tratamento de um câncer de pulmão e se escondeu em seu refúgio de Maricá, construído por Oscar Niemeyer, dizendo que no hospital só havia pessoas querendo morrer e ele, ao contrário, desejava viver. Irreverente, duro na queda, era do tipo de nunca entregar os pontos. Segundo o jornalista e escritor Zuenir Ventura, “humilhou o câncer” ao escapar do Samaritano para “ir comer pastel com caldo de cana e escrever” até dois anos mais à frente. No dia de ditar o testamento, a casa cheia de amigos consternados, sugeriu: “Vocês não fiquem aí com essas caras fúnebres porque eu não vou morrer ainda, tenho de escrever um livro antes”. E escreveu não apenas um, mas quatro.
A arquitetura do DF está para Niemeyer como a construção do pensamento da capital do país está para Darcy Ribeiro, que a entendia como uma invenção única, cartão de visita de um país candidato a ser copiado, referência de futuro, espelho do modernismo. Defendeu de forma ferrenha a construção da UnB. Brincalhão como era, apelou ao presidente Juscelino Kubitschek para “não permitir que Brasília crescesse chucra, com mentalidade haurida nas pastagens de Goiás, por falta de universidade”. Na visão dele, deveria ser a melhor e mais prestigiada, símbolo daquele Brasil arrojado e orgulhoso de parecer um ponto fora da curva aos olhos da América do Sul. “Mas eis que chega a roda-viva” (a ditadura) e o sonho é posto no armário. Vai viver no exílio, no Uruguai.
Na análise da trajetória de Darcy gasta-se tempo e tudo gera uma certa perplexidade, porque ele vivia tão intensamente quanto trabalhava em seus escritos. Foram oito livros na área de etnologia, sete na de antropologia, oito na de educação, nove ensaios e dois romances (Maíra/1976 e O mulo/1981). Só no fim da vida tornou-se poeta, mas o conjunto da obra lhe valeu a cadeira de número 11 da Academia Brasileira de Letras, que já pertenceu a Fagundes Varela. Era mais do que justo. Ao lado disso, teve uma experiência política das mais ricas: ministro da Educação e chefe de gabinete do presidente João Goulart, vice-governador do Rio de Janeiro (por ironia, perdeu para Moreira Franco – um dos investigados na Operação Lava-Jato e ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência no governo de Michel Temer – a eleição para governar os cariocas, em 1986) e senador pelo estado do Rio.
Fundador e reitor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (como foi da UnB), mentor e responsável pela implantação dos revolucionários Centros Integrados de Ensino Público (Cieps), nascidos no governo Leonel Brizola (PDT), o polêmico Darcy ainda tem o crédito de haver sido autor do PL que deu origem à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), lei 9394/96. Não bastasse, divertia-se muito – e a síntese de tanta irreverência causou embaraço a parentes próximos e amigos até na hora da leitura do inventário, que beneficiava, inclusive, um cavalo de estimação. Dizia-se que amava as mulheres e que tinha certo desprezo pelos homens, acusados de “feder muito”. Mas o que amava mesmo era o Brasil e a mistura de raças cujo resultado acreditava ser quase um milagre. Lamentavelmente, já vai longe o tempo em que a cultura do país era defendida por gente de estatura intelectual tão elevada.