04.03

 

Nos 130 anos do nascimento do maestro, país reverencia uma obra que desconhece barreiras e pode chegar a todos.

Luce Pereira (texto)
Arquivo DP (foto)

Lá pelos anos 1980, o maestro Diogo Pacheco tinha dois programas de música clássica na Rádio Eldorado de São Paulo e frequentemente recebia pedidos dos ouvintes para tocar a “música do desodorante” (Perfumes de Vinólia), um comercial de TV que usava mulheres lindas caminhando lentamente ao som de As quatro estações, do italiano Antonio Vivaldi. Aquilo ajudou a alimentar uma das teses mais defendidas por ele – a de que ninguém precisa entender para gostar do gênero clássico/erudito, tarefa que caberia tão somente a músicos e compositores. Bastaria sentir, portanto. Já naquela época, Pacheco se queixava que uma elite, a fim de manter certa reserva de domínio em relação ao assunto e enfatizar ainda mais a distinção de classes, havia se ocupado de difundir a ideia do conhecimento como condição para se apreciar a obra de grandes compositores europeus do quilate de Mozart, Beethoven, Chopin e do próprio Vivaldi. Porém, a grande audiência dos programas não deixava dúvidas sobre o que na verdade faltava ao gênero para ser um dos mais populares entre os brasileiros – acesso fácil. Mais de 40 anos depois, outro desses exemplos se soma aos muitos já surgidos desde que Pacheco se empenhou em desfazer a mentira criada pelas elites: o país se mobiliza para comemorar os 130 anos de nascimento do compositor carioca Heitor Villa-Lobos, neste domingo, com vasta programação nos principais teatros. E ninguém duvida que estarão lotados.
Talvez por achar que criando uma música clássica/erudita a partir das raízes brasileiras pudesse assim contribuir para uma maior intimidade do país com o gênero, Villa-Lobos tenha se lançado na construção de uma obra vigorosa e admirada não apenas aqui, mas no mundo. Mergulhou tão profundamente no folclore e na cultura nacionais, através de viagens feitas ao Norte e ao Nordeste, que acabou sendo considerado o descobridor “musical” do povo brasileiro. Embora o começo da carreira tenha sido marcado pela influência dos compositores eruditos europeus, no século 20 apropriou-se da linguagem nativa para misturar ao refinamento de sua música uma pitada do que chegava às ruas através de gente como Ernesto Nazareth, João Pernambuco, Catulo da Paixão Cearense e Anacleto de Medeiros. O modernista inquieto gostava de se juntar aos grupos de choro, sua primeira paixão, e formar parcerias famosas. Mais lá na frente, em 1942, reuniria sob sua batuta, na gravação da coleção Brazilian Native Music, Pixinguinha, Donga, Cartola e João da Baiana. Para o bógrafo David Appleby, “Villa-Lobos criou o reconhecimento internacional da música made in Brazil que tornou possível o sucesso, mais tarde, da Música Popular Brasileira tal como ficou conhecida. Appleby, então, apropriadamente, coloca o maestro como um “precursor de Tom Jobim, Caetano Veloso e Chico Buarque.
O “maior compositor das Américas” produziu cerca de mil obras, mas merece ser ainda mais aplaudido por ter ajudado a desmistificar a ideia de uma música clássica/erudita vinculada à necessidade de conhecimento. Fecham-se os olhos e o que qualquer pessoa sente, independentemente do nível social ou de escolaridade, é uma música brasileira vestida de gala para falar dos sentimentos mais simples e mais humanos. Quem estiver em São Paulo, hoje e amanhã, e for ao suntuoso Theatro Municipal vai poder ver a orquestra da Casa, sob a regência do maestro Roberto Minczuk, fazer apresentação inédita das nove Bachianas Brasileiras, em dois espetáculos. No Rio, o Museu Villa-Lobos oferece uma série de concertos, amanhã, mas os recifenses, também, terão a chance de apreciar o trabalho: o Departamento de Música da UFPE realiza um Concerto Coral Sínfônico sob a batuta do maestro Wendell Kettle, a partir das 18h, no Teatro Luiz Mendonça (Parque Dona Lindu). Entrada franca, com ingressos começando a ser distribuídos uma hora antes.