10.03

 

Se as atuais dificuldades desanimam, as riquezas do passado fazem valer o parabéns neste domingo.

Luce Pereira (texto)
Silvino (arte)

Quando a conjuntura não anda bem, o primeiro que vai embora é o orgulho das coisas que sempre pareceram muito caras aos habitantes. A cidade conta a história deles, mas, se vive dias difíceis, esquecê-la é muito fácil. Tornamo-nos ingratos sem sentir, tal a aspereza com que passamos a nos relacionar com o cotidiano. Então na hora de cantar parabéns para ela, o fazemos até de má vontade, feito não existisse um pouco de nós naquela História contada durante a passagem dos séculos. Domingo é dia de velas por apagar no bolo do Recife e de Olinda, duas cidades que se tornaram meninas dos olhos de poetas, boêmios, intelectuais, escritores e músicos – essa gente que traduz a vida com o coração e ao menos por isso deveria ser levada em conta na hora em que as críticas tornam amargo o gosto do bolo de aniversário. Senão pelo presente, com todas as suas impiedades, que a gente possa se valer do passado para resgatar a alegria da data. Não fossem o Recife e Olinda duas referências na cultura do Nordeste, não teriam, por exemplo, recebido gênios do quilate de Castro Alves, cujo nascimento, a propósito, completa 170 anos dois dias depois da festa para as duas “irmãs”. A capital pernambucana ajudou a forjar o brilhantismo que o Brasil conheceria mais à frente, embora entre nós a presença do baiano ilustre seja tão pouco festejada. É uma pena e uma injustiça, vamos admitir.
Foi aqui que fez as primeiras poesias, aos 17 anos, quando tentou, sem sucesso, ingressar na Faculdade de Direito do Recife, o que viria a acontecer um ano depois, em 1864. A atmosfera cultural reinante alimentava a personalidade magnética do rapaz, o que contribuía enormemente para fortalecer o mito de tribuno e poeta irrepreensíveis, sempre requisitado por intelectuais, artistas e estudantes. À beleza e ao porte, somava-se um carisma que arrancava aplausos e ovações, conjunto infalível para despertar admiração nos homens e paixão nas mulheres. Viraria um sedutor tanto pelos atributos físicos quanto pelo dom da palavra, que produziu os mais belos poemas líricos do país e uma das defesas mais comoventes (e convincentes) dos escravos. Ao assistir, no Teatro de Santa Isabel, a uma apresentação da atriz portuguesa Eugénia Câmara apaixonou-se, à mesma época em que criava seu primeiro poema contra a escravidão, A canção do africano. Entre idas (para a Bahia) e vindas ao Recife, passou cerca de cinco anos entre nós e protagonizou momentos memoráveis como quando, na companhia do escritor Fagundes Varela, em 10 de agosto de 1865, recitou O sábio, na Faculdade de Direito.
O Recife de Castro Alves também era o de Rui Barbosa, de Joaquim Nabuco e de outros expoentes da cultura, que aqui se uniram para formar uma sociedade abolicionista. Os gritos de liberdade ecoavam na obra de cada um e se multiplicavam à medida que conquistavam a cidade com seus discursos e escritos inflamados. Quando deixou a capital pernambucana para se estabelecer no Rio, em São Paulo e, por fim, na Bahia, onde morreu vitimado pela tuberculose (Salvador, 6 de julho de 1871), levou da cidade sentimentos que marcaram sua obra, eternizada ao ocupar a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras. A semente daqueles primeiros arroubos literários nascidos aqui germinou até o último momento quando ele conseguiu, ainda, produzir um volume de versos onde estão a Cachoeira de Paulo Afonso, Os escravos e Hinos do Equador, publicados depois de sua morte. É certo que cidade e habitantes sofrem metamorfoses, ao longo do tempo, e nem sempre para melhor – mas entre uma parte e outra sempre haverá laços e pontes que não se destroem. É preciso celebrá-los com esperança de que, a qualquer tempo, seja possível uma convivência mais amena. Parabéns, Recife e Olinda, ainda que a praça já não pareça do povo como o céu, do condor.