Mau uso do acessório é alardeado, mas quem usa quer se desconectar da realidade e ignora perigo iminente.
Luce Pereira (texto)
Greg (arte)
Este é um tempo de excessos – infelizmente, em relação a acontecimentos e situações ruins, o que, claro, piora muito a já discutível qualidade dos seres humanos. Um tempo de competição e de solidão, porque, afinal, permitimos à tecnologia substituir várias das verdadeiras importâncias de nossas vidas, inclusive a de conviver frequente e intimamente com quem mantemos vínculos de amor e amizade. Inventamos uma clausura para construir dentro de nós um mundo onde possamos ouvir apenas aquilo que queremos. Não é interessante, afinal, enfrentar sem “proteção” alguma a rotina cada vez mais nervosa das grandes cidades (barulho, estresse, neuroses) e então imaginamos uma espécie de fuga em massa simplesmente colocando … Fones nos ouvidos. Os tais, sim, senhor. Viraram quase tão comuns na cena urbana quanto as próprias orelhas e muitas vezes, de tão insistentemente próximos, quase uma extensão delas. Pessoas (jovens, na maioria) que não andam acompanhadas deles, aqui, são como quem caminha sem puxar um cachorro em cidades ricas do Hemisfério Norte: parecem ter saído à rua deixando em casa algo capaz de defini-las como indivíduos perfeitamente integrados ao ambiente em que vivem.
E porque já são tantos a buscar o mesmo viés de individualismo, transformou-se em acessório que designa uma tendência – usa quem é “descolado”, do mundo, sempre com um pé no presente e outro no futuro. O lado ruim disso – mas que não parece interessar nem um pouco a essa “tribo” – é o mal que faz à audição, e não faltam estudos mensurando o quanto. Os britânicos têm um que aponta o surgimento da surdez já aos 50 anos, enquanto a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que se o uso com volume alto se estender por mais de 90 minutos ao dia o usuário pode desenvolver zumbido ou apresentar perda auditiva nos próximos cinco anos. Caso o som esteja na potência máxima, os riscos de isso acontecer aumentam em 70%.
Mas os apelos superam sempre as ameaças de prejuízos futuros para a saúde. A maioria imagina duas hipóteses: ou o resultado dos estudos é exagerado ou os danos acontecerão a perder de vista e em proporção bem menor do que a alardeada. Perguntei, por exemplo, a Antônio, o office boy de um escritório comercial que visito com certa frequência por que estava sempre com fones nos ouvidos e ele respondeu que era “uma maneira de se desligar do mundo”, naturalmente, o mundo que o incomoda, com notícias desagradáveis, prognósticos desanimadores, ruídos que estressam. Mesmo no ônibus, atravessando ruas ou na fila de um banco, não se desgruda do acessório, que pluga ao celular e ouve apenas as músicas com as quais suas emoções e circunstâncias se identificam. Neste caso, hits evangélicos, embora não haja nenhum estudo demonstrando que Deus vá se compadecer da audição de quem exagera no volume e no uso.
Otorrinos dizem que, uma vez lesionadas, as células auditivas não se regeneram e que até a escolha do repertório pode alterar o estado emocional do usuário, pois sons estridentes ativam algumas áreas do córtex auditivo e geram esforço mental no lugar do relaxamento. Evidentemente, o alerta entra por um ouvido e sai pelo outro, quando se sabe até que não são poucas as pessoas dependentes do acessório a ponto de adormecer usando-o. Neste caso, a probabilidade de que as consequências sejam mais graves aumenta muito.
Filosoficamente falando, o Brasil e sua capacidade surpreendente de produzir fatos negativos rumorosos poderia por si só justificar o uso crescente de fones de ouvidos – porque, afinal, ninguém aguenta tanta exposição a uma realidade que esbraveja incessantemente contra os cidadãos – mas é mesmo o viés do individualismo que explica tamanha dependência. Os fones servem, na verdade, para sinalizar sobre uma escolha das mais infelizes: andamos preferindo cada vez mais olhar para nossas próprias carências do que nos enxergarmos como parte de um mundo que clama justamente pelo contrário – fraternidade.