28.03

 

Quando uma mulher foge de um assalto e números confirmam a insegurança no transporte coletivo.

Silvia Bessa (texto)
Arquivo pessoal (foto)

Cláudia adorava panquecas de frango. Sexta-feira passada, a zeladora levava consigo uma travessa cheia delas para o que seria o almoço do sábado com o marido e filhos. Quem preparou as panquecas foi a funcionária doméstica Andréa Valéria, uma amiga com quem nos últimos três anos dividiu sorrisos, abraços e os almoços diários na residência do casal Gilka e Fábio Assis, de Pedro, João e do cão Beethoven. “Era uma pessoa doce e muito discreta. Era incapaz de fazer algum comentário sobre qualquer morador do prédio. Nunca reclamava de nada. Eu gostava demais dela. Tanto que, a nosso convite, passou a frequentar minha casa nos intervalos do expediente”, contou-me ontem Gilka, em prantos.
Por volta das 20h30 da sexta, Andréa terminou de assar as panquecas e sugeriu que Cláudia Maria dos Santos Silva se apressasse. Estava ficando tarde, mas ela preferiu esperar a companheira. Ficou por ali com Beethoven, o cachorro que se a avistasse vinte vezes por dia latia vinte vezes de alegria. Ele também a adorava e já abanava o rabo antes mesmo de Cláudia tocar a campainha, sempre perto do meio-dia. “Fomos rindo do prédio até a parada de ônibus do Carrefour na Avenida Domingos Ferreira”, mais ou menos a 100 metros de distância.
Cláudia ria por tudo. Entre aqueles que conviviam com ela – eu, inclusive – costumavam mencionar a simpatia como uma qualidade elogiável. Só não sorria quando falava de violência, um assunto recorrente. Horas antes de morrer, entre refeições, disse para Andréa: “Tenho muito medo. Na linha de ônibus que eu pego é muito assalto. Já tive livramento de uns três porque não subi”. Andréa emendou: “Você não se esqueça de pegar somente ônibus cheio. Sim, e, se tiver alguma coisa, não reaja”.
Na sexta, na parada 11, a do Carrefour, se separaram. Cláudia, 49 anos, entrou em um ônibus Circular Tancredo Neves para, em seguida, pegar o coletivo que seguiria para o bairro do Ibura, onde mora. O corpo dela ficou no meio do caminho na BR-101. Dois homens haviam anunciado um assalto. Desesperada, testemunhas contam que a porta do coletivo estava aberta e ela pulou quando se aproximava da passarela da BR perto do Ibura. Teve traumatismo craniano. A Polícia a encontrou e a levou para o hospital. No sábado, no grupo de Whatsapp do prédio onde também moro, a comoção era generalizada. A zeladora morreu no domingo por volta de 13h.
Cláudia era muito tranquila. Reagiu com imprevisibilidade, como qualquer um de nós sob ameaça de ser morta. Não pode ser culpada pelo seu destino. De mãos dadas com o fim dela, está a reincidência de assaltos a ônibus, a violência com a qual lidamos. De janeiro até hoje foram 503 assaltos a ônibus em Pernambuco. Ontem a Polícia Civil divulgou um balanço para dizer que a quantidade de assaltos a ônibus tem caído ao longo dos três meses: foram 179, depois 175 e neste mês de março a soma está em 129. Cláudia viu as dezenas de relatos dos vizinhos chegarem perto. A família pede que se investigue porque quer entender se, além da violência, houve negligência do motorista por não voltar para socorrer a passageira.
Ela era tida como excelente profissional e pessoa. Era pontual e responsável. A síndica do Edifício Madona das Rochas, Ana Karina Ulisses, disse-me que tinha uma impressão única de Cláudia: “Parecia feliz com o que tinha. Nunca reclamava de nada”. Com apenas nove anos e afeto por Cláudia, Júlia, a filha de Ana Karina, teve crise de choro. Na rotina diária, tinha preocupação com as pessoas e era sempre disponível. Com dona Terezinha, uma moradora senhorinha, cultivava uma relação de afeto. A levava no supermercado e atendia pedidos ocasionais com zelo. Ontem de manhã, dona Terezinha sentiu falta e foi perguntar por ela ao porteiro, Orlando Calheiros: “Você viu Claúdia?”. Orlando disfarçou. “Não veio hoje”. Sandro, companheiro de Cláudia na zeladoria do prédio, foi além: “Parece que tirou férias, dona Terezinha”. Tinha um grupo de conhecidos preocupados em como falar a triste notícia de Cláudia para dona Terezinha.
As férias de Cláudia estavam previstas para o final deste mês. Pretendia se ocupar com o aniversário da neta. Com Andréa, confidenciou que pensava em fazer uma espécie de sorteio para arrecadar recursos para viabilizar a festinha. Deixou um marido, Santos, Cleiton, outro filho de 21 anos e a netinha.
Domingo, pouco depois da confirmação da morte dela, o filho mais velho dela, Cleiton Christian de 25 anos, saiu do Instituto de Medicina Legal e mandou tatuar seu grito de saudade na pele do peito. “Cláudia Maria. Eternamente”, dizia a frase. Cláudia fará falta.