Perigo chamado erotização da infância faz Secretaria de Assistência Social do Amazonas lançar campanha.
Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)
Lugar de criança é na infância, vivendo a infância e sendo apenas o que a natureza dita para esta fase da vida. Ao menos deveria ser assim, se o mundo não caminhasse dando a impressão de estar saudoso da Idade Média, quando ainda não existia a noção de que há uma fronteira separando-as da maturidade. Ali, meninos e meninas eram vistos como pequenos adultos, só passariam a ser inseridos no espaço família a partir da Idade Moderna, de acordo com o historiador francês Philippe Ariès, segundo o qual, ainda, apenas no século 20 os olhos do mundo passariam a olhá-las sob o ângulo do bem-estar, da proteção e dos direitos. O retrocesso neste percurso diz respeito às consequências da danosa erotização a que estão expostas, que, felizmente, a ciência começa a problematizar, mas segue se constituindo em enorme desafio para pais e professores: às tontas diante da (nem tão nova) realidade, precisam ser reeducados, tarefa que demanda informação, tempo e, sobretudo, responsabilidade. Necessitam de suporte. Nesse processo, a Secretaria de Assistência Social do Amazonas saiu na frente e acaba de lançar a campanha Criança não namora, nem de brincadeira, que é um viés importante da questão.
Eis que em um nada belo dia, a menina chega em casa anunciando o “namoro” com um coleguinha e pega os pais de calças curtas, embora eles nunca tivessem dúvida de que mais cedo ou mais tarde a situação surgiria, pois, não por acaso, viveram o mesmo “comportamento inadequado”, incompatível com a idade que tinham. Diante de um cenário assim, psicólogos infantis se apressam em explicar que, geralmente, filhos pequenos apenas repetem o que veem, ouvem ou são incentivados a fazer no ambiente familiar. Logo, seria hora de a sociedade dar a mão à palmatória, fazer um mea culpa e partir para empreender uma verdadeira cruzada no sentido de desconstruir o velho padrão, que, sem sombra de dúvida, remete a uma criação com contornos machista onde, via de regra, meninos são estimulados a ter namoradinhas, enquanto as meninas, a se comportar. E para piorar muito o quadro, a forma torta de lidar com a situação leva pais a ver o interesse pelo outro como “algo erótico, quase genital”, quando na verdade isso é apenas uma projeção deles, a criança está somente aprendendo a fazer amigos, a se relacionar, segundo avalia a psicanalista do Centro de Referência da Infância e Adolescência da Unifesp (SP), Vera Zimmermann, em depoimento à revista Crescer.
Sem qualquer pretensão de dourar a pílula, pais são direta ou indiretamente responsáveis pelos estragos e precisam aprender a reconduzir as crianças ao universo delas. É preciso dedicar o devido respeito ao desenvolvimento cognitivo, que pode ser comprometido com a queima de etapas. Elas não têm maturidade e, portanto, discernimento para assimilar o que significa namoro, apenas são estimuladas a repetir (mesmo sem entender) padrão ditado pelos adultos, quando deveriam canalizar as energias para brincadeiras. Antecipar sensações que virão no tempo devido, alertam os estudiosos, só causa angústia e, nesse caso, elas não distinguem aproximação e amizade.
É preciso aprofundar o olhar e o nível de reflexão, porque criança com roupas inspiradas no modo de vestir de adultos, em especial os que cultuam o corpo como instrumento de aceitação; crianças estimuladas a praticar danças de apelo erótico e aquelas quase obrigadas pelos pais a abraçar precocemente profissões que fazem de palcos e passarelas santuários da fama estão propensas à exploração, sobretudo sexual. Embora a memória da sociedade para questões assim seja muito curta, não dá para esquecer o caso de Gabriela Abreu, a Mc Melody, 8 anos, uma das crianças alvo de ação do Ministério Público de São Paulo, em 2015, que investigava músicas e coreografias de forte apelo erótico interpretadas por estrelas mirins. Em um vídeo, a menina aparecia dançando o Quadradinho de oito, do grupo Bonde das Maravilhas, segundo apurou o MP, por incentivo do pai, Mc Belinho, acusado de usar a imagem da filha com intenção de obter lucro. Convenhamos, para reinventar um mundo assim é preciso, no mínimo, reinventar o amor.