14.04

 

Independentemente de religião, há épocas cheias de simbolismos e apelos para os quais seria saudável olhar.

Luce Pereira (texto)
Editoria de arte (imagem)

Sim, é claro, muito cristão vai lembrar que Semana Santa não era bem isto: fazia-se jejum, ia-se à igreja ver os santos cobertos de roxo, as beatas de luto, o padre mais cerimonioso, os bancos cheios de fiéis demonstrando completa empatia e solidariedade pelo sofrimento do filho de Deus. A via-crúcis com suas estações, mostrada através de quadros pregados ao longo das paredes, chamava mais a atenção e o uso de água benta – para “lavar os pecados e evitar coisa ruim” – aumentava a olhos vistos naqueles dias. Também a lembrança de que consumir carne era quase uma heresia deve voltar, hoje, como se a proibição fosse uma memória recente. E já faz tanto tempo que esses rituais ficaram pelo caminho, dando a impressão de que a fé, agora, se vê nua, sem o escudo que fazia dela uma força incomensuravelmente poderosa. Naquele tempo, o mistério metia medo em quase todos e o intangível se encarregava de levar para longe a racionalidade. Imagina: medo de que o sacerdote não encontrasse a palavra Aleluia, na Bíblia, durante a celebração da missa campal, na noite da sexta-feira. Para o povo crédulo, vê-la pronunciada tinha valor de salvação e aquilo, de tão ingênuo, era bonito demais.
Sim, o tempo avança e muda tudo de lugar, porque faz parte da natureza dele dar novas feições às coisas da vida. Nada de saudosismo, entenda. O que lamenta-se aqui não é racionalidade e ingenuidade terem travado luta feroz durante todo esse tempo – com inquestionável vitória da primeira sobre a segunda – mas a distância de palavras indispensáveis à sobrevivência do mundo: amor, solidariedade, fé, humanidade, reflexão… Todas elas, desde sempre, muito ajustadas aos apelos destes dias “santos”. Deram, todavia, lugar a práticas que apenas sinalizam para a quase obsessão da maioria por satisfação pessoal, como se a época significasse só e tão somente a chance de cair no mundo, na preguiça ou na balada. Independentemente de religião, há épocas que são naturalmente carregadas de simbolismos e apelos para os quais seria saudável olhar (ou sensato ouvir), se houvesse o mínimo de clareza sobre o óbvio: quanto mais evitamos o que nos desafia, mais perdemos a chance de alcançar a maior das recompensas – viver melhor, a partir da consciência dos limites, da impermanência e do papel social de cada um. Mas nem Francisco com sua fama de ser, até agora, um dos papas que mais chegou ao coração do rebanho tem conseguido se fazer ouvir na proporção da necessidade.
Com o mundo corroído por guerras e ameças de mais guerras, a fogueira das vaidades alcançando alturas e o egocentrismo torcendo o nariz para verdades e princípios universais, deveriam ser outros os questionamentos desta época do ano, quando involuntariamente (até) somos instados à leveza de espírito. Mas, não: na ordem das prioridades figuram o preço do bacalhau, do vinho e dos ovos de chocolate, de passagens, da gasolina e das diárias em algum lugar onde a rotina não alcance. Também importa saber onde deixar o cachorro ou as crianças e se vai dar para descansar depois de todo o descanso que antecede a volta ao trabalho. Definitivamente, não há disposição nem espaço para mais nada, porque o “eu” já ocupa todos os espaços disponíveis, é um sujeito “folgado” demais.
Novamente digo que não se trata de lamentar diante das ruínas de um tempo que parecia mais humanizado pela fé, pois, afinal, não se constrói o futuro sobre memórias, embora, também,não se chegue a ele sem as lições aprendidas. Ou será que não aprendemos nada com o tempo e o sofrimento, dois dos maiores mestres em deixar marcas? Esta é uma boa reflexão para quem se permite invadir pelo sentido da Páscoa e acredita na ressurreição – de Cristo como dos ideais humanos mais elevados.