Descoberta nos EUA permite estabelecer conexões com acervo pré-histórico da Serra da Capivara.
Vandeck Santiago (texto)
Divulgação (foto)
A situação andou tão agitada nos últimos dias que uma notícia merecedora de atenção especial para o Nordeste e o Brasil passou sem grande destaque. Trata-se da descoberta de evidências em um sítio arquelógico de San Diego (EUA) de que os primeiros seres humanos chegaram à América há 130 mil anos, e não há 15 mil anos, como sempre se pensou até agora. Os novos dados baseiam-se em estudo em restos de um mastodonte com cerca de 130 mil anos — os dentes e ossos dele foram cortados com ferramentas como martelos e bigornas, utilizadas por humanos. A conclusão dos pesquisadores, do Museu de História Natural de San Diego, é que uma espécie de hominídeos vivia na região naquela época. A pesquisa saiu na revista Nature, uma das publicações especializadas mais respeitadas do mundo.
Agora, o que isso tem a ver com o Nordeste?
Vamos por partes.
Primeiro, o Nordeste tem a maior concentração de abrigos com arte rupestre do mundo. Não se trata da afirmação de um nordestino com pendores para a megalomania — é um fato científico. Quem o diz é a doutora em arqueologia Gabriela Martin, espanhola, autora do livro Pré-História do Nordeste do Brasil (Editora Universitária/UFPE). O acervo pré-histórico do Nordeste tem importância mundial; é diversificado e numeroso. Em Maravilha (AL), a descoberta de fósseis da megafauna inspirou a construção de réplicas em tamanho natural, instaladas ao ar livre, como a do tigre dentes-de-sabe (foto).
Segundo, o Nordeste é a base de uma teoria segundo a qual os primeiros humanos teriam chegado aqui muito antes dos 15 mil anos. Para esta teoria, o povoamento teria acontecido há pelo menos 58 mil anos — artefatos que datam desse período foram encontrados na Serra da Capivara (PI). A defensora mais notável dessa tese é a arqueóloga Niéde Guidon, uma brasileira que nas últimas quatro décadas vem quixotescamente tentando provar que o homem pôs os pés na América bem antes do que considera a tese internacionalmente predominante. A Serra da Capivara é patrimônio cultural da humanidade desde 1991. Tem 420 sítios arqueológicos, e as pinturas rupestres lá existentes podem até ser anteriores aquelas encontradas nas cavernas mais famosas do mundo: Altamira (Espanha) e Lascaux (França). Fica em São Raimundo Nonato (PI), onde Guidon criou em 1998 o Museu do Homem Americano.
Terceiro, o que está nas enciclopédias é que os primeiros humanos a chegar nas Américas teriam vindo de uma região entre o que hoje é a Mongólia e a Sibéria, e atravessado o chamado estreito de Bering por uma ponte de gelo formada na era glacial. O autor do estudo que data o povoamento em 130 mil anos, Steven Holen, afirma que os humanos podem ter vindo por este estreito ou por “via marítima ao longo da costa”. A teoria que privilegia os achados da Serra da Capivara também considera que a travessia dos primeiros humanos pode ter sido feita por outras vias, além do estreito de Bering.
Quarto, tanto nas descobertas da Serra da Capivara quanto nesta recente da Califórnia, falta algo que se encontrado seria irrefutável: um esqueleto humano. Alguns vestígios antigos poderiam ser fruto de processos naturais. O mais antigo encontrado na Serra da Capivara tem cerca de 10 mil anos. O crânio de Luzia, descoberto na região de Lagoa Santa (MG), 11 mil anos. No caso do Brasil, as terras ácidas, os ritos de incineração dos cadáveres, as grandes áreas do trópico úmido pouco favorável à conservação de ossos e a falta de pesquisa são fatores que dificultam encontrar ossadas humanas, explica Gabriela.
A descoberta dos pesquisadores em San Diego lança novas luzes sobre a datação dos “primeiros homens das Américas” e de certa forma estabelece uma conexão com os achados e a teoria que têm a Serra da Capivara como base.