03.05

 

Num voo do Rio para o Recife, o passageiro que pede licença e me socorre na hora do lanche é Belchior.

Luce Pereira (texto)
Jarbas (arte)

Lembro muito daquele voo saindo do Galeão para o Recife, em 2007, eu praticamente no “modo automático” quando pus a bolsa de bordo no compartimento superior e me sentei, afivelando o cinto. Quase não havia dormido, nas últimas 24 horas, porque passar o fim de semana na companhia de amigos que adoram farra tem seu preço. Dali a pouco, um sujeito bigodudo surgiu ao lado da poltrona, tentando heroicamente acomodar a pequena mala no porta-bagagem já bem entupido. Era Belchior. Pediu licença ao rapaz que ocupava a poltrona do corredor, sentou-se ao meu lado. Permaneci com olhos semi-abertos até chegar o café da manhã. E foi a minha eterna falta de habilidade com embalagens de biscoito que salvou a viagem e me deu uma memória que guardo entre as mais delicadas. Vendo que eu não conseguia abrir o pacotinho, nem mesmo usando os dentes, ele riu e se prontificou para a tarefa, que deu conta com facilidade. A mesma com que eu disse “obrigada, Belchior”, como se nos conhecêssemos há anos.
O voo seguia tranquilo e a conversa ia-se adensando à medida que algumas coincidências ligadas a pessoas e situações no Rio de Janeiro surgiam. Ele ficou muito surpreso ao descobrir que eu sempre me hospedava no apartamento do compositor Fausto Nilo, na Gávea, endereço frequentado nos anos 1970 pelo Pessoal do Ceará – como ficou conhecido o grupo que tinha, além de ambos, Fagner, Ednardo, o músico Manassés, entre outros. Não parecia do tipo saudosista, mas uma pessoa em paz com os bons de tempos de juventude, nos quais, segundo disse, rindo, “todo mundo pinta e borda, porque é da natureza dessa época”. Estava visível em cada palavra a paixão pela filosofia, pela psicologia, universos percorridos desde cedo por puro fascínio, marca claramente impressa nas letras das músicas. Trocando em miúdos, gostava de pensar e de musicar esses pensamentos, que era a sua maneira de estar no mundo – e mesmo o jeito escolhido para fugir dele, de vez em quando.
Sem dúvida, a uma certa altura, eu já estava desejando que a viagem se estendesse por mais algumas horas, pela riqueza e leveza. Falou que seu compromisso no Recife era cantar no espaço Sala de Reboco e me convidou para ir vê-lo, naquela noite. Expliquei que, infelizmente, precisava dormir e ele, então, me disse que ficaria muito feliz se eu, no dia seguinte, fosse almoçar no Arriégua, na General Polidoro (Cidade Universitária). Trocamos telefones. Ligou na hora combinada, por volta das 11h40, afirmando que a produção toda já estava no restaurante, de onde sairiam para o aeroporto, e que eu não demorasse a chegar, pois ainda poderíamos “render” mais. Durante a comilança, haja assunto, só interrompido por uma ligação (nem tão rápida assim) da cantora Amelinha. Muito amável, era o jeito da conversa. O tempo voou. Diante do nervosismo e insistência de um jovem integrante da equipe, dizendo que iriam perder o avião, só assim demos o encontro por encerrado. Ganhei um papel com o endereço/telefone de um apartamento no Campo Belo e o convite para visitá-lo, numa ida a São Paulo. Também um abraço apertado e o último CD.
A gente nunca sabe quando é a última vez. Nunca. Dois anos depois, quando o Brasil passou a perguntar “onde está Belchior?”, imaginei com os meus botões que ele, inteligente e sensível como era, deveria ter optado por um daqueles distanciamentos do mundo, para poder se reencontrar consigo mesmo, com sua música. Soube-se, depois, das dificuldades financeiras, dos problemas até para voltar a ter um endereço fixo. Mas são caminhos e escolhas que diziam respeito ao cidadão Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle. Aos fãs interessava apenas o ídolo e suas músicas que, de fato, cortavam a carne da gente, como era desejado em A palo seco, um dos maiores sucessos da carreira. Mas “canto torto”, eu digo, foi mesmo o que entoamos depois da notícia e enquanto o corpo era velado no Centro Dragão do Mar, em Fortaleza, ironicamente projetado por Fausto Nilo, que depois trocaria a música pela arquitetura. Então, sem remédio, hoje eu fico com outra frase – viver a divina comédia humana/onde nada é eterno – e com a lembrança daquele voo.