Existe lei para punir motorista que molha pedestre, mas nenhum dos dois lados atenta para direito e dever.
Luce Pereira (texto)
Nando Chiappetta (foto)
Os tempos atuais parecem dizer que “é proibido ter certeza”, até sobre se vale a pena mesmo se alegrar com a chegada da chuva, algo tão prosaico para a maioria dos cidadãos. Exceto o atoleiro em que segue a classe política, independentemente de invernos, tudo o mais parece relativo além da conta. Pela ausência tão longa, chuva como a de segunda-feira, por exemplo – que se estendeu por quase todo o dia de ontem – deveria ser saudada ao menos com bom humor, e ela foi, no entanto, apenas por privilegiados que puderam ficar em casa, longe do estresse e dos transtornos. Mas vá dizer isso a motoristas obrigados a enfrentar ruas alagadas, engarrafamento, buracos, semáforos com problema, medo de assaltos e dificuldade em cumprir compromissos. Nem ouse. Muito menos para pedestres, os mais prejudicados, porque soma-se a tudo a histórica má qualidade das calçadas e a pouca educação de condutores nunca interessados em saber o que acontece fora do veículo que conduzem. Querem chegar aos seus destinos e pouco importa a situação do caminhante, mesmo daquele que é vítima de um “banho” tomado quando o carro passa a toda velocidade, espalhando a água acumulada na pista. Tudo leva a crer que o perfil de quem age assim sugere uma pessoa com um nível de consciência social do tamanho de uma vírgula, que se dá por satisfeita em ignorar até as normas básicas de educação no trânsito, confiada na insuficiência de fiscalização sobre o que reza o Código de Trânsito Brasileiro.
A maioria não deve nem tomar conhecimento, de fato, que este é um tipo de infração prevista no Código (artigo 171), mas considerada, como tantas outras, “penduricalho” quase impossível de ser alvo de cobrança pela autoridade competente. A exemplo daquela que obriga o condutor a usar as duas mãos sobre o volante, na posição “9h15”. No caso do pobre pedestre vir a ficar ensopado, diz a lei feita pelo Denatran que deve ser aplicada ao condutor com esse comportamento multa no valor de R$ 130 e mais quatro pontos na carteira de habilitação. Ainda que houvesse tal possibilidade, na prática – e o número de agentes de trânsito parece inversamente proporcional à má educação dos condutores – convenhamos que se trata de uma punição nada educativa, pois o valor é mínimo e o peso na consciência do infrator, menor ainda. Voltamos à estaca zero: se a cidade tivesse um sistema de drenagem que evitasse o acúmulo de tanta água nas vias públicas, ao menos por este aspecto a falta de respeito de motoristas com pedestres seria menos visível e as consequências para as vítimas em dias assim, atenuadas. Essas, sobretudo, ignoram que viraram objeto de preocupação de uma lei. Mas, no fim das contas, uma vez sem condições de ser aplicada, tanto faz.
Rafael tem três filhos (um adotivo), mora no Ibura, e marcou de chegar à minha casa às 8h30 de ontem para fazer uns pequenos reparos. Apareceu às 10h40, parecendo que havia nadado o percurso inteiro. Perguntei-lhe se o guarda-chuva não havia dado conta da tarefa, desde a última parada, e ele me explicou que teve que andar parte da Mascarenhas de Morais até a Barão de Souza Leão a pé, porque o ônibus quebrou. No entanto, perdeu a conta de quantas vezes durante o trajeto foi sendo açoitado por jatos de água produzidos pela passagem de carros que passavam por alagamentos sem diminuir a velocidade. Relatou a aventura rindo, sem demonstrar amargura nem revolta, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Perguntei-lhe se gostaria de um café, para diminuir o frio que eu imaginava estivesse sentindo, e ele, com o mesmo humor, me disse: “Se preocupe, não, pobre só se incomoda com coisa que parece ser maior do que ele”. Já de longe, observando-o fazer o trabalho, fiquei refletindo sobre uma maneira de explicar que não existe ameaça maior do que o conformismo, pois, entre outras coisas, ele contribui até para riquezas como a chuva parecerem inconvenientes.