20.05

 

Escândalos políticos se encarregam de realçar o pior sentido da palavra, considerada relíquia no vocabulário junino.

Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)

Pessoalmente, defendo o São João como sendo a festa mais bonita do Nordeste. Sempre. Porque lembra alegria, otimismo e gratidão pela fartura saída das lavouras, embora a falta de água e a situação econômica delicada de quem vive de qualquer espécie de cultivo contribuam para tornar menos possível a reedição daqueles tempos imemoriais. Mas, mesmo nos contentando com o que sobrou dela, é difícil não lembrar que já no começo de maio não se falava em outra coisa: comidas típicas, fogos, forró – com que roupa vamos? – e as quadrilhas, tão bonitas, com seus rituais ingênuos e divertidos. Mudamos tanto. Sim, senhor. No Brasil de hoje, quadrilha remete a um sentido doloroso, cheira mal, deixa nervos à flor da pele e o pior do país, à mostra. À menor referência ao nome, milhares se armam dos piores verbos, cospem impropérios, fazem juramento tácito de vingança, sacolejam o mundo virtual como gorilas enfurecidos atrás de grades. Também em relação a isto, queixo-me enormemente da política, tão ultrajante na mania de manter viva esta má conotação do termo.
Naturalmente, nós, nordestinos convictos, preferíamos que a língua portuguesa desse outro nome ao que o artigo 288 do Código Penal Brasileiro define como associação criminosa. Pelo enorme apreço à palavra como referência de alegria quase incontrolável, no período junino, deveríamos reivindicar o uso de apenas esse sentido, que exatamente se opõe à tristeza e à vergonha causadas pelo outro. Questão de justiça, aliás, porque a quadrilha tal como amamos surgiu por aqui em 1820, muito antes de o Código nomear assim malandros criminosos que se juntam para passar a perna em pessoas ou mesmo em um país. Não que precisemos ir às ruas pedir esse respeito – afinal, elas aguardam os brasileiros por motivos muito mais graves -, mas que possamos lamentar nossa discordância ao menos onde se travam, nos dias de hoje, as guerras mais confusas, engraçadas e virulentas – no mundo virtual. Tenho um conhecido que me pergunta se acesso muito “o hospício”, termo usado por ele para definir as redes sociais. Aqui, abro um parêntese a fim de explicar a tese desse meu conhecido: lugar de loucos, porque internautas “sugerem uma felicidade que parece de personagem; são amados, mas há controvérsias; parecem tristes, mas só até a postagem não atingir cem curtidas; e valentes até o desaforo não ser cobrado pelo mundo real”. Rio sempre que a ironia é fina.
Mas, voltando ao termo que tanto designa a reunião de pessoas alegres e dançantes, no São João do Nordeste, quanto a de corruptos ou criminosos de outra natureza, com presença mais forte, hoje, em Brasília, o jeito é mesmo recorrer às memórias. Essas, a propósito, apontam para uma descaracterização tão crescente das quadrilhas matutas originais que não adianta nem sonhar em ouvir a marcação do “alevantú” (em avant tous, do francês, os casais avançam), “anarriê” (en arrière, do francês, os casais recuam). Tudo mudou – roupa, música, coreografia – e elas mais lembram escolas de samba, pois até alegorias e enredo (tema) têm. Ainda assim, são quadrilhas. É alegria sem culpa e sem dó, coisa de que o Brasil precisa tanto para reafirmar seu compromisso com a leveza. Quem nos dera, já pudesse ser hoje o dia de tão bendita redenção.
Quem nos dera já fosse junho, por aqui. No mínimo, o enorme ruído causado pelas ações das quadrilhas más seria momentaneamente abafado pelo som delicioso do arrastapé das boas quadrilhas. Dançaríamos ao menos com a memória, se insatisfeitos com aquilo em que se transformou nossa festa junina – mais uma máquina de fazer dinheiro do que uma reverência à tradição. Contudo, o bom é que de uma forma ou de outra São João sempre dá um jeito de “acender a fogueira do ‘nosso’ coração, como pediu Luiz Gonzaga. Amém.