30.05

 

Com presidente impopular e credibilidade do Congresso em xeque, indiretas sofrem rejeição.

Vandeck Santiago (texto)
Cris Faga/ Fox Press Photo (foto)

O maior cronista político que o Brasil já teve, Carlos Castelo Branco, olhou para a multidão que se concentrava na Praça da Sé, em São Paulo, e vaticinou:
— Pode mudar a história, desde que seja o ponto de partida para outros iguais.
Acertou em cheio. Seu vaticínio deu-se a partir do fato que ele viu, o comício pelas Diretas Já, em 25 de janeiro de 1984. Depois dali, outras manifestações ocorreram pelo Brasil inteiro, e como previra Castelo, mudaram a história.
Domingo passado uma outra manifestação, pedindo a mesma coisa, foi realizada no Rio, com a participação de — segundo os organizadores — cerca de 100 mil pessoas. Não sei se o público chegou a tanto. Organizadores são aquelas pessoas que concentram todo o seu entusiasmo na hora de calcular o número de pessoas presentes ao evento que organizaram. Mas isso não importa. O principal a destacar aqui é que havia muita gente, e a participação estava diversificada, festiva e pacífica. Não teve mascarados correndo para um lado e outro, tacando pedra e lixeira em vidraças. Nem aquele tom ranzinza que torna algumas manifestações parecidas com marchas de glorificação da intolerância.
Lá estavam Caetano Veloso e Milton Nascimento, entre outros artistas. “Movimento pelas Diretas Já no Rio tem ares de Carnaval”, destacou matéria da revista Veja. Não sei se com a alusão ao Carnaval o título pretendeu elogiar, criticar ou simplesmente retratar o acontecido. Creio que só quis retratar. Faço a menção à notícia de uma grande publicação porque a participação da mídia foi um caso à parte na campanha das Diretas Já em 1984; houve veículos que abraçaram a ideia e cresceram com ela, como foi o caso da Folha de S. Paulo. E houve também veículo que tentou não ver, até que chegou o dia que tinha tantas pessoas na rua que era impossível não vê-las.
Se a manifestação de domingo, no Rio, vai inspirar outras pelo país, não sabemos. Infelizmente, desde 1993 o grande piauiense Carlos Castelo Branco não está aqui para nos brindar com sua avaliação. Mas, dada a situação em que estamos, dada a impopularidade do presidente Michel Temer (que não é de hoje; a foto dessa página é de setembro do ano passado), dada a credibilidade de parte do Congresso, é possível deduzir que uma campanha pelas Diretas Já pode tornar-se um poderoso fato novo.
Em política, o fato novo é o elemento mais poderoso das transformações. No deserto de saídas para a crise, é preciso percorrer quilômetros com a língua de fora para encontrar uma com potencial de conquistar o sentimento e os pensamentos de larga parcela da população — a campanha das Diretas Já pode ser isso.
No domingo, enquanto acontecia o ato no Rio, vi um eminente analista comentar na TV que a campanha das diretas era, neste momento, um equívoco, porque acabava dando mais tempo para o governo Temer, que se encontra moribundo. A base do raciocínio era que as Diretas Já precisam antes ser aprovadas no Congresso, alterando a Constituição (que hoje prevê eleições indiretas no caso de o presidente renunciar). Em que pese as boas intenções do caro colega, imagino que ele — diferentemente do Castelo — não estava atento para as janelas do futuro, para a imensidão das consequências do fato novo.
Uma campanha pelas Diretas não exclui automaticamente outras alternativas. Ela apenas coloca um novo integrante na sala de estar das decisões: o povo. Sem a pressão do povo e das ruas, o que nós temos é uma eleição indireta onde na escolha do novo presidente estarão deputados que são comprados como tarecos: aos montes, no atacado, como se viu na denúncia dos irmãos Batista. As Diretas Já de 1984 não foram aprovadas, mas impediram que na disputa indireta que se seguiu o eleito fosse Paulo Maluf.
Uma campanha capaz de catalisar os sentimentos de parte da população tem outro efeito. É um mecanismo de acumulação de forças. Quanto mais ampla e plural for, mais força acumula. O movimento atual tem o apoio de partidos que (pelo menos teoricamente) jogam no lado esquerdo do campo: PT, PSol, Rede, PDT, PSB e PCdoB. Se conseguir incorporar gente que não segue orientação desses partidos, nem são simpatizantes deles, melhor. Se tiver bandeiras não apenas de uma cor, mas de diversas cores, melhor ainda. A “camisa oficial” da campanha de 1984”, por exemplo, era amarela.
Movimento de rua tem potencial para isso, porque, como dizia Paulo Freire, a vida real é que cria a consciência, e não o inverso.