Um passeio pela feira e pelo Alto do Moura basta como termômetro para medir a temperatura da festa.
Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)
Bem sei o que significa estar em Caruaru nos fins de semana em que as esquinas só respiram forró, ainda mais quando o calendário vai se aproximando do dia 23. É o melhor “deus nos acuda” do ano, mas há que ter disposição e muito amor para enfrentar o vaivém ininterrupto de turistas e moradores verdadeiramente devotos da festa. No centro e no Alto do Moura, sobretudo, o furdunço não aceita amadores. Por isso resolvi tirar o dia, ontem, para caminhar tranquila, conversando e ouvindo as pessoas sobre como anda o clima ante a proximidade da festa. Algo me dizia que o tal orgulho das raízes nordestinas vem ganhando cores mais vistosas, talvez com um empurrão da campanha dos músicos Chambinho do Acordeon e Joquinha Gonzaga, nas redes sociais, #DevolvamNossoSãoJoão. E eu estava certa.
Comecei indo à feira, aquela que inspirou Luiz Gonzaga pela beleza e diversidade de produtos e que ainda vejo como um programa imperdível na cidade. Já cheguei a perambular quase um dia inteiro pelas “ruas” apinhadas daquele artesanato honesto, criativo, merecedor dos elogios que recebe, e sempre me despedi com disposição renovada para voltar. Imediatamente, os versos de Flávio José “Se avexe não/ Que a Burrinha da Felicidade/ Nunca se atrasa/ Se avexe não/ Amanhã ela para na porta/ Da sua casa (…)” me arrastaram. O som vinha da carrocinha de CDs e DVDs piratas, desafiando a chuva miúda que caiu por pouco tempo, depois das 10h. Aproximei-me do vendedor, elogiando a escolha da música, ele sorriu: “Não escolhi, não, moça. Nesse pendrive tem 2.220 faixas do melhor pé de serra do Nordeste”. E passou a uma apresentação resumida. Joelson (que não quis dizer o nome completo “por medo de ´deduragem´ para a Polícia Federal”) se disse animado, pois as vendas estavam indo de vento em popa. Não sabia da campanha #DevolvaNossoSãoJoão, mas viu a entrevista de Elba Ramalho, dada na abertura dos festejos em Caruaru, onde criticava a presença maciça dos chamados sertanejos nos palcos principais da festa. “Elba merece um beijo, por isso. Eles que vão cantar nas festas deles”.
Enquanto eu conversava e Joelson me convencia a levar o pendrive, duas paulistas se aproximaram, desta vez atraídas pelo som e a letra maravilhosos de Olha pro Céu (Luiz Gonzaga). Dançaram às gargalhadas e logo receberam as mesmas explicações do vendedor. Natália Coelho, 34, e Andrezza Duarte, 36, trabalham numa empresa de design e arquitetura e vieram “encher as malas com peças de Vitalino”, além de, claro, cair no forró. Alugaram apartamento por um site e vão ficar dez dias na cidade. “Sempre tivemos vontade de vir, porque a cultura é fantástica, ficávamos babando quando víamos imagens do Patio do Forro, do Alto do Moura”. Então eu cutuquei, querendo saber sobre as críticas aos sertanejos. “Olha, isso tudo é porque rola muita grana e o poder público não está nem aí para cultura. Nada mais triste”, opinou Natália. “Aqui não tinha que ter nada além do que o forró de vocês, tinha que ser mesmo o São João de vocês”, emendou Andrezza. E Joelson vendeu outro pendrive.
Foram muitas as conversas nas barracas de tapeçaria e peças de artesanato, sobretudo, que deveriam estar com som de músicas juninas. Em uma delas, a dona agradeceu o cartaz trazido por um funcionário da prefeitura, mas reclamou que faltavam bandinhas circulando entre as barracas. Dona Eusébia, 68, que ajuda a neta a vender redes, reclamou: “Nada é perfeito”. Mas foi logo emendando que Caruaru faz a festa mais bonita do país. Ama tanto o São João que naqueles anos todos nunca saiu da cidade, durante a festa. “Mas eu não gosto de tudo, não. Tem cantor que não canta nosso forró”. No Alto do Moura, onde não falta gente arrastando ou tocando sanfona, zabumba e triângulo, há quase uma unanimidade sobre que deveria haver consenso em torno das atrações. “Artistas com raízes nordestinas, apenas”, decretaram seis amigos que ocupavam uma mesa no restaurante Luciano do Bode. Eu tinha que encerrar o dia com a pergunta do mais enfático, José Cláudio Silva, 54, dono de uma empresa que recupera pneus: “E a senhora ouviu falar numa campanha, #DevolvameuSãoJoão? Elba está dentro. Deu até um baile danado em Campina Grande, numa entrevista aqui!”. Pronto, a velha (e boa) rivalidade surgia, enchendo o salão de gargalhadas.