A normalidade na Mata Sul é apenas aparente; milhares de crianças têm futuro ainda mais incerto.
Silvia Bessa (texto e foto)
Para Carlos, menino de 5 anos, a semana começou mais dura do que nunca. Pela manhã, comeu um pão com miolo lambuzado de margarina e uma xícara de café. Estava aguardando o que mais a sorte lhe daria, uma vez que nos últimos dias vive assim, da boa vontade e generosidade alheias. No ócio infantil, restava-lhe brincar com os amigos Marcos e Gabriel, ambos de 4 anos, integrando-se ao mutirão da sobrevivência. De calça jeans, sem camisa, com seus braços finos, usava a força vinda da magrelice para transportar pacotes com garrafas de água potável do terreno de uma escola ocupada por desabrigados da chuva. Ia pendendo do jardim da escola municipal em que habita temporariamente até os quartos onde se improvisa moradia. Um conjunto de nove famílias está na mesma situação da família de Sandra de Oliveira, 24 anos, mãe de Carlos, após as enchentes do último dia 29 de maio.
Faz 15 dias que a tragédia bateu à porta de 35.764 pessoas hoje desalojadas. A rotina parece que voltou ao normal. De longe, é assim: um engano. Para quem saiu às pressas fugindo das agitadas águas do Rio Una, a vida ainda está presa a entulhos. Para piorar, muitos pontos de acolhimento montados pelas prefeituras dos municípios atingidos não têm a menor condição de acomodar famílias. Como em Gameleira, onde Carlos está, há abrigos com estrutura muito precária, comida racionada e, na maioria dos dias, serve-se misturas de soja ou se lança mão de enlatados, como sardinhas e carnes prensadas. É o possível. Diana de Paula, de 25 anos, saiu às pressas com seu bebê e o marido temendo o desmoronamento da barreira próxima da sua casa. “Há dois dias não temos água para beber”, disse-me segunda-feira passada, sendo corroborada pelas novas vizinhas. O que mais se ouve é relato de crianças vitimadas pelas enchentes.
Ana Laura, de 2 anos, está em condições insalubres para qualquer criança. O cheiro de mofo do espaço que a família dela ocupa é quase insuportável. Tampa as narinas. A se tirar pela tinta que cai, a parede deve sofrer infiltrações. No máximo, são três metros de largura por três metros de comprimento. Um colchão de casal e um colchão de solteiro quase preenchem por completo o piso e é ali que a mãe Betânia Kelly, Ana Laura, João Lucas de 4 anos e o marido se misturam às poucas roupas salvas, uma pequena estante de ferro e uma televisão.
É cedo para afirmar que passou a fase da ajuda humanitária. Até quem tem um teto enfrenta dificuldades e, por vezes, até fome porque tudo está fora do lugar e a pouca comida da dispensa foi-se com a enchente. Já se tratava de um lugar pobre antes mesmo da enchente. Os moradores da Rua Manoel Ciriaco de Lima, que fica à margem do Rio Una, dizem que estão fora da rota governamental de benefícios básicos porque é de difícil acesso. Lá, visando doações de qualquer mantimento, sobretudo os alimentos, crianças vagam em torno de quem se aproxima. Tudo fica quarando no chão de areia, espécie de rua, esperando uma nesga de sol que se abra. É triste vê-los porque ninguém pode prever para essas famílias em quanto tempo o braço social das instituições públicas poderá transformar a rotina diária caótica que se vê hoje.
São milhares de famílias pernambucanas ainda famintas, precisando de uma toalha de banho seca, um kit de higiene com escova de dentes e cobertores para que se aqueçam no final do dia. E não apenas em dias mais frios deste inverno que só começou. Carlos, os amigos Marcos e Gabriel e a menina Ana Laura sentem frio e dependem de comida escassa todos os dias. Somente doações podem amenizar o drama deles e de outros 35 mil pernambucanos neste momento. Continuemos.