20.06

 

Símbolo de ascensão social para população de renda mais baixa, cartões são agora atingidos pela recessão.

Vandeck Santiago (texto)
Silvino (arte)

Eu estava lendo o jornal e vi uma história constrangedora com um cidadão chamado Joe Weider Ferreira. Primeiro me chamou a atenção o nome dele – Joe Weider era americano, considerado o pai do fisiculturismo e, para quem viveu os anos 1980, um nome conhecido no Brasil em cursos de exercícios físicos por correspondência. Mas aquele outro da notícia, Joe Weider Ferreira, é um brasileiro, um trabalhador pertencente à classe C, e talvez um nome do qual nunca mais ouviremos falar. O seu cartão de crédito havia vencido e ele estava esperando um novo. Enquanto isso, foi com a mulher fazer compras. “Fomos ao mercado com o cartão da minha mulher e, ao tentar pagar a conta de R$ 50, vimos que o dela também estava bloqueado”, conta Joe Weider Ferreira. “Foi chato. Eu tinha [o meu] há 10 anos. Já comprei televisão, máquina de lavar e celular com ele”.
Esta é a história constrangedora da qual eu falava. Está em reportagem de Fernando Nakagawa, do jornal Estado de S. Paulo (“Bancos cortam cartão de crédito de clientes com renda mais baixa”, 18/06/17). Não se trata de um caso isolado, diz a matéria: “Os bancos estão cortando os cartões de crédito dos clientes que julgam ser de maior risco, especialmente os das classes mais baixas. Só os dois maiores do psaís – Banco do Brasil e Itaú Unibanco – retiraram de circulação 1,2 milhão de cartões nos primeiros quatro meses deste ano, segundo dados informados pelas próprias instituições”. Os motivos seriam a recessão e a inadimplência.
É um daqueles assuntos que, por trás de sua aparência econômica, carrega gatilhos poderosos, como os que disparam sentimentos (autoestima) e escolhas políticas (“Comigo, o povo voltará a usar cartão de crédito” — qualquer marqueteiro que puder usar esta expressão com o seu candidato, vai usar). Nós aqui no Nordeste conhecemos bem isso: a população pobre que tem acesso ao cartão de crédito vê naquele pedaço de plástico o símbolo de uma ascensão que dá orgulho sobre o presente e esperança para o futuro. Muitas vezes, aquele que o consegue é o primeiro da família, ao longo de gerações. Ganha projeção inclusive na vizinhança – ele pode, por exemplo, “emprestar” o cartão, prática corriqueira que consiste em permitir que outra pessoa compre com ele e pague as “prestações” ao seu titular. Garante o acesso ao mundo do consumo – da TV, da máquina de lavar, do refrigerador, bens que não tinham antes. Se vocês me permitem uma comparação talvez exagerada (ou talvez não), é como o escravo que ao ser libertado procurava logo comprar sapatos. Era o símbolo do homem liberto (alguns, dado o fato de terem passado muito tempo andando descalços, sentiam o desconforto de andar calçados – então penduravam os sapatos ao pescoço. O importante era demonstrar que eles também podiam adquirir o calçado do homem liberto. Ou seja: o símbolo).
Não sei se vocês lembram, mas houve uma época em que até reclamávamos da prática abusiva do envio de cartões sem que os tivéssemos solicitados. Nesta época, informa a matéria do Estadão, o Brasil emitia um novo cartão “a cada dois segundos”. Entre 2008 e 2010, as operadoras “emitiram e enviaram quase 27 milhões aos brasileiros”. Em 2015 havia no país 165,2 milhões de cartões – o maior número atingido, desde que a série começou a ser computada, em 2008.
A matéria diz que “embora os clientes reclamem que estão sendo feitos cancelamentos sem aviso prévio”, os grandes bancos “afirmam que só cancelam os cartões por razões previstas em contrato, como atraso no pagamento”. E que, mesmo sem o cancelamento unilateral, “algumas operadoras usam de outras estratégias para pressionar o cliente a desistir do cartão, como diminuir o limite ou aumentar a cobrança da taxa de anuidade”.
Não nos move aqui a discussão especificamente econômica, que é área dos especialistas no tema, mas sim o fato como fenômeno de um Brasil que a cada dia dá mostras de semelhanças com o país de décadas atrás. Nesse fenômeno, as estatísticas surgem como legendas de fotografias amareladas de um Brasil de antigamente.