Em recente discussão no Facebook, vi que não é pacífico o gênero do nome da nossa cidade.
Urariano Mota (texto)
Silvino (arte)
Em recente discussão no Face, vi que não é pacífico o gênero do nome da nossa cidade. Daí que vale a pena retomar um trecho do Dicionário amoroso do Recife, que publiquei em 2014.
O nome “recife” é sinônimo de “arrecife” nos dicionários. O batismo da cidade veio desses muros aflorados por milênios na costa pernambucana: arrecife ou recife. O nome é masculino desde a origem. No entanto, sei por experiência que devemos sair da visão etimológica, porque ela se esvai nos costumes dos dias presentes. Imaginem o que seria a comunicação se conversássemos usando palavras no significado etimológico. Cairíamos numa comédia do diálogo entre um homem do século 16 com outro do século 21.
Penso que devemos partir do histórico mais perto do presente. Melhor, devemos vir do histórico que se fez civilização, dos poetas e escritores que falaram e falam da cidade no gênero que ficou, por força da arte e do pensamento. Pois não é próprio e legítimo estabelecer pontes entre o gênero prático e o gênio poético?
Assim, desde o título Evocação do Recife, Manuel Bandeira canta a cidade no masculino em um dos seu máximos poemas. Também Carlos Pena Filho nos conduz no Guia prático da cidade do Recife. E assim o masculino da cidade aparece em João Cabral de Melo Neto. Mais: poderíamos citar todos os grandes poetas de Pernambuco, que sempre se referem à cidade no masculino. Além de João Cabral, Manuel Bandeira e Carlos Pena Filho, as citações iriam de Ascenso Ferreira e Joaquim Cardozo a Mauro Mota e Alberto da Cunha Melo. Com direito à passagem, é claro, pela tradição pernambucana, que atende pelo nome de Gilberto Freyre: “O recifense diz ‘Chegar ao Recife’, ‘Vir para o Recife’, ‘Sair do Recife’, ‘Voar sobre o Recife’”. E Gilberto Freyre, com a graça de sempre, afirmava que somente a gente de fora se referia à cidade sem o artigo masculino.
Se saímos da tradição literária da cidade, temos a graça de ouvir na música popular o compositor e cronista Antônio Maria. Ele canta e encanta até hoje com “sou do Recife com orgulho e com saudade”, e mais: “que adianta se o Recife está longe, e a saudade é tão grande que eu até me embaraço”. Como esquecê-lo ou negá-lo?
Falar ou dizer dE Recife, Em Recife, ou Recife sem o artigo masculino antes, é o mesmo que renegar as mais belas vozes da cidade, e assim desprezar o excelente, que é o modo mais vil de ignorância. No entanto, a mídia do Sul e Sudeste algumas vezes claudica no gênero da cidade. E mais sério, acha que escrever Em Recife ou nO Recife é uma questão menor. Os seus consultores de língua portuguesa, se interrogados sobre o uso correto, respondem que tanto faz, quando de modo mais claro responderiam: para a importância periférica do lugar, tanto faz escrever dE Recife ou dO Recife. O que vale dizer: seria o mesmo que exigir correção diante de um nome tupi conforme as regras da fala dos índios.
Já houve até gramáticos, como Napoleão Mendes de Almeida, que tiveram a pretensão de nos ensinar a falar o nome da nossa cidade. Ensinar tupi aos tupis? Pois assim nos ensina o senhor Napoleão:
“Ao chamar hoje Recife de ‘o Recife’, não há tradição. A tradição é a que por nós foi testemunhada quando aí estivemos. Veja-se para confirmação, a fotografia que se encontra na página 51 do Guia prático, histórico e sentimental de Recife, de Gilberto Freyre…”.
Ato falho, o sabido Napoleão alterou o nome do livro de Gilberto Freyre, que é Guia prático, histórico e sentimental dO Recife. O certo é que tanto na mídia do Sudeste quanto na aula de tupi para tupis de Napoleão residem um desconhecimento soberbo, à beira da soberba, do que entendem como a tradição dos periféricos.
Em resumo, podemos falar que o Recife é fêmea, como fêmeas são todas as cidades. Mas o Recife masculino veio do seu útero. Toda a cidade do Recife é um abrigo, residência, identidade, modo de ser e origem do seu útero fecundado. Por isso dizemos nO Recife, dO Recife, O Recife. O que significa: o amor mais fundo pelo útero desta cidade.
Também me incomoda a imprensa sulista se referir a qualquer fato ocorrido em Pernambuco como “no” Pernambuco. Nunca vi jornalista da Folha de São Paulo ou do Estadão escrever “no” São Paulo.