Ator nascido em Garanhuns foi eleito “patrimônio vivo de Pernambuco”, na lista que acaba de ser divulgada.
Luce Pereira (texto)
Arte DP sobre foto de Brenda Alcântara/esp. dp (imagem)
Nem sempre a histórica má vontade de Pernambuco em reconhecer o trabalho de artistas e da arte que eles ajudam a elevar se mostra tão má assim. Há pausas, porque, afinal, não pega bem para um estado de cultura tão singular seguir fazendo vistas grossas a tais importâncias. Numa dessas pausas nasceu a lei que agradece, com uma pequena ajuda vitalícia, à contribuição desses “patrimônios vivos”, eleitos anualmente. Porém, mais do que a bolsa concedida, (entre R$ 1.600 mensais, pessoas físicas, e R$ 3.200, entidades), recebem o reconhecimento público, o que tem sabor muito especial. Às vezes até tardiamente, como no caso do ator José Pimentel, 83 anos, que está entre os seis eleitos de 2017. Não fosse pela carreira, que fez dele um dos artistas mais íntimos dos palcos e da cena daqui, seria pela insistência em seguir, ignorando todas as dificuldades, o ofício que abraçou. Ofício ingrato, diga-se, num lugar onde a arte só sobrevive porque é teimosa.
Pois bem: Pimentel passou a vida se mostrando desses sujeitos que deixam transparecer obstinação, quando o assunto é a sobrevivência de sua arte. Sempre fez do ato de contestar uma forma de mantê-la respirando, talvez porque, desde cedo, tenha chegado à conclusão de que não se adaptaria a coisa diferente de atuar, escrever, dirigir e respirar teatro. Natural de Garanhuns, o caminho trilhado acabou transformando-o no “Cristo” da cena, aquele que primeiro aparece na memória do povo quando chega o período da Páscoa por aqui. Pudera: durante mais de duas décadas fez a personagem no espetáculo de Fazenda Nova – a paixão que transforma Pernambuco em vitrine do turismo nacional, durante o período – e mesmo trocado por um ator jovem e bonito (Fábio Assunção, que, justiça seja feita, também se mostrou muito talentoso, ao longo dos anos) não desistiu. Era 1997. Por não concordar com a direção geral do espetáculo acerca da saída encontrada, pegou o seu Cristo e foi embora, arranjar um local para fazê-lo renascer. Parecia algo como trocar a cama de uma suíte imperial pela de uma estrebaria – mas o seu “menino”, embora desacreditado, ressurgiu. A princípio, com a história sendo encenada no Estádio do Arruda; depois (e até hoje), no Marco Zero. Somando tudo, já dá um “Cristo” com quatro décadas – nem o próprio viveu tanto.
Anos atrás, quando eu ainda era titular da coluna Diário Urbano, ele me relatou algumas queixas. Via texto mesmo. Pairava no ar ameaça de que a prefeitura deixaria de patrocinar o espetáculo do Marco Zero e ali me pareceu, mais do que revoltado, abatido por essa possibilidade, que acabou não vingando. Houve burburinho, defesas não piedosas, mas sinceras, e a gestão concluiu que o “show” deveria continuar. No ano passado, outro show, o da vida real, dependia de sinal verde – mas do imponderável. Pimentel foi bater numa UTI, escapando, porém, de uma quase invencível embolia pulmonar. Aos 82 anos, convenhamos, é para poucos. Bem imagino o que significou para ele saber, ontem, que foi eleito como “Patrimônio Vivo de Pernambuco”, junto com outros cinco contemplados da lista deste ano – a parteira Maria dos Prazeres; o fundador do Balé Popular do Recife, André Madureira; o músico Mestre Chocho; o Reisado Inhanhum de Santa Maria da Boa Vista; e a Sociedade de Bacamarteiros do Cabo. Só pegando emprestado um título de Clarice Lispector, deve ter sido como “um sopro de vida” – no sentido de que agora mesmo é que ela vai valer a pena.
Ajudado no início da carreira por Ariano (Suassuna), de quem foi aluno de português e depois integrante do elenco de O auto da Compadecida, Pimentel circulou muito pela cena local, trabalhando inclusive em televisão (A moça do sobrado grande) e como apresentador (do polêmico Sinal Fechado, em pleno regime militar). Escreveu, dirigiu e atuou no espetáculo A batalha dos Guararapes (1984), quando ainda fazia parte da Sociedade Teatral Fazenda Nova (STFN), e atraiu holofotes pela performance em O calvário de frei Caneca, encenado nas ruas do Recife. São alguns, entre tantos trabalhos. Pelo conjunto da obra, portanto, o reconhecimento começa a ficar de bom tamanho.