Não se espantem se ao entrar no ônibus encontrarem alguém tocando com palhas de bananeira.
Vandeck Santiago (texto)
Gabriel Melo (foto)
Por onde andará aquele rapaz que, no final dos anos 1990, sempre subia nos ônibus que faziam a linha Cidade Universitária e tocava Pixinguinha e Roberto Carlos usando palhas de bananeira como instrumento? Depois a gente se acostumava, mas na primeira vez que o víamos todos se espantavam que daquelas folhas saísse um som parecido com o do saxofone. Em 2003 um outro pernambucano, fazendo a mesma coisa, apresentou-se no programa do Faustão e até ganhou prêmio em dinheiro com a sua performance. Este já era um adulto (seria o mesmo rapaz que antes se apresentava nos ônibus?…), e vinha com uma história dramática: ele teria começado a tocar com palhas de bananeira depois que lhe roubaram o instrumento verdadeiro.
O final dos anos 1990 e início dos anos 2000 era cheio de histórias assim. Nos ônibus em todas as linhas, havia uma espécie de “personagens fixos”, que pediam esmolas ou contribuição sempre com o mesmo discurso, repetido até nas pausas. Quadro semelhante se via nas ruas. Em frente ao antigo prédio do Diario, ali na Pracinha da Independência, costumava se apresentar um grupo de capoeira no qual, pela habilidade e graça, se destacava um capoeirista chamado Luciano Torres, que mais tarde todos nós viríamos a conhecer como Todo Duro, nosso simpático campeão de boxe. Davam pinotes, dançavam, tocavam — e enquanto isso um deles passava um chapéu pedindo contribuição.
Estas cenas desapareceram a partir da metade dos anos 2000. E agora estão voltando, impulsionadas pela recessão e pelos assombrosos números do desemprego (14 milhões de desempregados). Estão de volta até as mais dramáticas, como aquela de um carro que para na rua e alguém num microfone começa a pedir ajuda para a pessoa que está lá dentro, deitada numa maca, vítima de alguma tragédia, necessitada desesperadamente de um tratamento médico pelo qual não pode pagar.
Houve uma sequência até chegarmos a isso. Em abril de 2015 pesquisa do instituto Data Popular mostrava que 42% dos trabalhadores brasileiros faziam “bico” para complementar a renda. Em 10 de abril do ano passado, o economista Marcelo Neri, da Fundação Getúlio Vargas, já dizia: “Após a crise política e econômica, já antevemos a crise social”. Sua avaliação era baseada em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Apontava ele que pela primeira vez desde 1992 a renda dos brasileiros diminuía e a desigualdade estava retornando. O desemprego, em 2016, já era alto. “O brasileiro perdeu o emprego com carteira, que era a grande conquista e símbolo dessa nova classe média, e manteve a renda, mas o sonho está se perdendo em grande escala desde 2014”, dizia ele.
O economista defendia reforço no Bolsa Família. “Quando você dá um reajusta no Bolsa Família, é visível o impacto na desigualdade”, argumentava ele, acrescentando que o programa fora responsável por 20% da grande redução de desigualdade registrada no país. “Dada a restrição fiscal, devemos tratar o Bolsa Família como algo a ser preservado, pois não traz efeito palpável para o ajuste, uma vez que representa apenas 0,6% do PIB, enquanto a Previdência soma 12%, ou seja, volume de gastos 20 vezes maior”.
O Bolsa Família atinge o pessoal lá de baixo da pirâmide social, mas o desemprego alcança outras faixas, de gente que já estava no mercado de trabalho e saiu e de gente que está querendo entrar pela primeira vez e não consegue. Brasileiros como o recifense Técio Lagos, de 23 anos (foto), que perdeu o emprego como auxiliar de serviços gerais em um mercadinho e tornou-se vendedor de dudu (suco congelado dentro de uma garrafinha, espécie de “picolé engarrafado”), como mostra matéria dos repórteres Anamaria Nascimento e Wagner Oliveira (“De patins, para atender mais rápido”, Diario, 8/07/17). O caso de Técio é um exemplo das práticas de sobrevivência dos anos 1990 adaptadas aos dias atuais: ele usa patins, que lhe permite circular entre o engarrafado trânsito recifense; trabalha vestido com roupas dotadas de proteção UV e fala por meio de um microfone para ser ouvido pelas pessoas dentro dos veículos.
Em 2015 o brasileiro recorria aos “bicos” para complementar a renda. Hoje, desempregado, o bico tornou-se para muitos a única fonte de renda. A face de um Brasil injusto, incapaz de garantir emprego e bem estar para a sua população, está de volta às ruas. Não se espantem se qualquer dia desses vocês entrarem no ônibus e encontrarem alguém tocando com uma palha de bananeira como se fosse um saxofone…