Líder sul-africano teria completado 99 anos ontem, data saudada pela ONU e por defensores da liberdade.
Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)
Em certos momentos da História, a falta de algumas pessoas pode ficar ainda mais evidente. O líder sul-africano Nelson Mandela, que ontem estaria completando 99 anos, foi imprescindível para o tempo em que viveu, mas faria enorme diferença se continuasse vivo, inspirando o mundo a agir em defesa da paz e da liberdade, palavras que parecem estar mergulhadas em um escuro para o qual ainda não temos resposta – sabemos apenas que ele avança de forma perigosa. Talvez seja urgente apresentar o exemplo de homens como Mandela aos muito jovens, que caminham para os desafios futuros determinados apenas a buscar a sobrevivência material, sem a menor preocupação com as necessidades de quem caminha ao lado. Era deste individualismo que Madiba se queixava, sem nunca desistir de defender a união de todos como combustível de uma esperança capaz de tornar o planeta uma casa habitada por irmãos. Se a ideia parece apenas um elevado ideal humano, é preciso lembrar, sobretudo, que ele dedicou 67 anos a esta esperança e que ela foi capaz de produzir uma revolução ao colocar abaixo, sem o emprego de violência alguma, os muros da segregação. Fez brancos e negros do seu país entenderem a paz como a única possibilidade de se ter uma vida melhor e mais justa.
Que falta faz Mandela, apesar do rico legado de sua crença na esperança como algo extraordinariamente motivador. Vivo, entre uma aparição e outra exibida por televisões ao redor do mundo, aquele jeito calmo e leve de quem aprendeu o suficiente sobre a transitoriedade da vida, insistiria na necessidade de revisão do dever de casa. Provavelmente diria que não existe lugar nenhum no futuro para quem ignora o coletivo e de lá, de sua “aldeia”, contribuiria para melhorar o nível de reflexão das sociedades. Não apenas isso: agiria. O que fascinava nele era exatamente a disposição para colocar pensamentos em prática, mesmo tendo eles lhe custado 27 anos de liberdade. O longo tempo de reclusão, no entanto, em lugar de torná-lo um cético quanto à possibilidade de transformação do homem, tornou-o um sábio: escolheu o caminho da virtude e, embora as feridas não sendo apagadas, perdoou, em nome do objetivo da reconciliação. Não se viu tentado, em momento algum, a devolver na mesma moeda, porque tinha pela frente uma tarefa que só seria plenamente realizada pelo viés da compreensão. E assim aconteceu.
Ontem, ao lembrar da data, que em 2009 instituiu como Ano Internacional Nelson Mandela, a Organização das Nações Unidas destacou a importância de cada pessoa dedicar 67 minutos do dia (número equivalente aos anos de luta dele contra o Apartheid) a fazer algo de solidário e inspirador por sua comunidade. Num mundo ensurdecido pelos apelos de um materialismo levado a extremos, a ONU sabe que a mensagem tem cada vez mais dificuldade de ser ouvida, mas, como Mandela, insiste. A veemência, no entanto, não seria necessária se as advertências de estudiosos como Brian Swimm e Edward Wilson fossem levadas a sério, pois tanto o cosmólogo quanto o biólogo asseguram que até 2030 este processo de devastação para o qual caminhamos pode atingir o ápice, se tudo seguir marchando no ritmo atual da barbárie.
A interrogação em nossas cabeças não é menor do que a que surgiu no cérebro do renomado cientista político Norberto Bobbio – outro incorrigível na crença do milagre produzido pela educação, a democracia e os direitos humanos – quanto ao que será do mundo no terceiro milênio. Se vivo, provavelmente Mandela nos convidasse a ver através da janela que construiu para enxergar o caminho ideal para o futuro – aquele percorrido sem dominação, ódio, violência e muros. E mesmo que não aceitássemos, preferindo a cegueira que leva para o abismo, é certo que ele insistiria – sorrindo, dançando, descobrindo a face luminosa (e bendita) do entendimento.