20.07

Novo Patrimônio Vivo de Pernambuco, a parteira Maria dos Prazeres é história para se guardar.

Silvia Bessa (texto)
Marlon Diego/Esp.DP (foto)

Este parto ninguém queria atender. Porque ajudar uma gestante a dar à luz na Ilha do Joaneiro era sinônimo de recusa médica. A comunidade, às margens da Avenida Agamenon Magalhães, vivia na pobreza extrema. Uma amiga foi buscar a parteira. No primeiro andar de uma casa desocupada, estava a mulher parindo. Dona Maria dos Prazeres chegou apressada. Apoiou-se no braço de um policial e pendurou-se numa corda que daria acesso ao vão superior. Recobrou a respiração ofegante para fazer o parto com a maestria que lhe é particular. Todos sobreviveram; um a um, desceram a corda.
Outro dia, o motorista de um ônibus que iria de Recife para Caruaru abriu a porta após parar defronte a uma maternidade. Dona Prazeres ali mesmo usou as técnicas que aprendeu em cursos técnicos na faculdade de medicina e na rotina diária das ruas para salvar uma vida. Em seis décadas, entre as que atendeu teve mulher que quis parir numa rede. Uma segunda que preferiu com parte do corpo na água, parte na rede. Uma queria ter o filho em gramado verde perto da Oficina Brennand, na Várzea. Teve. Um sem-número optou pela posição de cócoras, agachada.
“A mulher é quem manda. Ela pode parir como ela achar melhor. Em pé, de banda. No Brasil, os animais têm mais sorte que as mulheres porque esses, sim, podem parir como querem. Aqui, tem essa coisa de fantasiar a mulher de branco ou verde, botar a perna virada desse jeito, daquele… Não, a protagonista tem de ser a mulher”, diz dona Maria dos Prazeres, 80 anos incompletos – como contabiliza.
Até 2008 dona Prazeres tinha feito 5 mil partos. Hoje, perto dos 6 mil, perdeu as contas. Por todos, acaba de virar um Patrimônio Vivo de Pernambuco. O merecimento é uma consequência não só numérica. Afora a estatística de dar inveja a qualquer médico ou enfermeiro obstétrico (este título, aliás, ela tem), está a compreensão dela sobre o nascimento, o antes, o durante e o depois. Sobre a vida em família. Sobre o papel social das parteiras.
“As mulheres de uma comunidade confiam nas parteiras. Quando o pai não quer registrar o filho, mandam me chamar. Quando um homem dá na mulher, na sogra… Converso e deixo tudo às mil maravilhas”, conta ela, autoridade popular em Sucupira, bairro de Jaboatão dos Guararapes, e referência no Brasil quando se fala em parteiras tradicionais, dessas que foram forjadas queimando alfazema quando a criança chega. “Sempre fui metida, enxerida e atravessada”.
Potiguar, o roteiro de dona Maria dos Prazeres é de cinema: “Fui a substituta de uma filha morta”. Foi trazida às escondidas entre os seios e a blusa de uma mulher para ser entregue à dona Francisca, mulher que a criou. Dona Francisca tinha acabado de perder uma menina e não queria ficar sem bebê. “Quando eu tinha 15 anos é que eu soube. Fiquei agradecida”. Dona Francisca e a mãe, dona Justina, eram parteiras. Prazeres, jovenzinha, vivia brechando o trabalho de parto por cortinas e foi assim que a tradição foi seguida. “É preciso coragem”.
Dona Prazeres tem muito o que ensinar. “Não acompanho uma gestante de qualquer jeito. Até para eu cumprimentar acho que a parteira tem de saber segurar a mão diferente”, explica, mostrando que as mãos da parteira abraçam a mão do interlocutor. “Digo que é preciso que pare, olhe e escute a gestante”.
Faz questão de ressaltar que a sociedade deve se preocupar com o parto humanizado e com a gestação humanizada. Com o zelo e o respeito a quem carrega uma vida no ventre. “É preciso olhar o tripé: pai, mãe e filho, porque o parto é algo familiar”, conceitua.
Dos quase 6 mil partos realizados (todos bem sucedidos e sem perder nenhum bebê, garante), uma cena ainda a toca: “O choro. Quando o bebê chora eu fico muito feliz”. E foi do choro dos bebês que ela tirou o aprendizado que mais gosta de repassar por aí: “O choro refrigera a alma. O do bebê e do adulto também. Quando me chamam para falar em público peço que todos pensem em algo para chorar”, relembra para propor: “Então, se você não chorou ainda hoje, chore que eu não preciso nem saber do motivo”.
Dona Maria dos Prazeres, a parteira, é nosso Patrimônio Vivo.