29.07

Temos mesmo a mania de adiar coisas fundamentais e o preço é uma dor que pode durar até que duremos.

Luce Pereira (texto)
Jarbas (arte)

A senhora que, segundo ela mesma, “quase não tinha estudo”, saiu daquela pausa que fez no pensamento e me disse uma sabedoria: “As pessoas avaliam todas as coisas, mas nunca levam a sério a mais certa: a violência pode acabar com tudo, de uma hora para outra”. Falávamos sobre como o mundo passou a parecer bruto e individualista – eu, claro, sempre adequando minha linguagem à compreensão dela, porque, afinal, as reflexões que vinham de pessoa tão simples mereciam ser traduzidas com a mesma singeleza, inclusive para a conversa fluir a perder de vista, como eu queria. Houve uma hora em que juntas nos queixamos da superficialidade das relações, ainda mais depois que “tudo entrou para dentro das máquinas (computadores, telefones …), inclusive o amor”, como deduziu sabiamente ela, lamentando a superficialidade do tratamento entre as pessoas, algo quase beirando a indiferença, como se cada um pertencesse a um planeta diferente.
Continuando a tese da possibilidade de a vida findar repentinamente – e eu me apressei a lembrar que não apenas por obra da violência – disse que ninguém faz a menor ideia do que significa arrastar o peso de abraços não dados, palavras de carinho e conforto não ditas, confissões mantidas em silêncio quando talvez pudessem mudar o curso de uma história, o rumo dos acontecimentos – ou apenas mesmo o dia de alguém, o que não é pouco considerando o quanto uma rotina dura vai “encalecendo” a humanidade, tornando a criatura mais predisposta a reagir sem ternura alguma. Saiba: conversas filosóficas não acontecem apenas entre pessoas que sabem o que é filosofia, mas entre as que tentam entender a si e aos outros à luz de experiências geralmente duras. A mulher vinha de perdas superlativas sobre as quais não quis entrar em detalhes, “porque não se deve acordar os mortos com lamúrias, só com lembranças boas”.
Temos mesmo a mania de adiar coisas fundamentais e o preço é justamente uma dor que pode durar até que duremos. Subitamente me veio à cabeça que ninguém escapa de arrependimentos sem remédio, nem mesmo príncipes como os filhos da eterna princesa de Gales, Diana. A imprensa mundial havia repercutido amplamente a fala de William e Harry, que por ocasião do aniversário da mãe, em 1º de julho (faria 56 anos), resolveram abrir compartimentos secretos da alma fechados desde a morte dela, em 31 de agosto de 1997. “Harry e eu estávamos com pressa para dizer ´tchau, a gente se vê logo´ … Se eu soubesse o que iria acontecer, é claro que não teria sido blasé (indiferente) com isso e com tudo”, confessou em entrevistas o hoje marido da duquesa de Cambridge, Kate Middleton. Contei sobre a desolação dos príncipes à mulher, ressaltando, no entanto, que eram apenas dois garotos empolgados com férias junto aos primos, quando a mãe ligou pela última vez.
A mulher, que esboçou certa tristeza ao ouvir sobre a notícia, vive hoje quase reclusa, não gosta nem mais de se sentar na frente da televisão e se move pela casa com um terço enrolado no braço esquerdo, como uma pulseira. Quando entrega as marmitas aos dois filhos, que saem juntos em uma moto, para os empregos, diz repetidas vezes que são o amor da vida dela, e os abraça com certa demora. O ritual do afeto, infelizmente, foi ensinado pela violência da perda e pela dor surgida, sobre as quais se recusa a falar. São só suas, como explica sempre. O que sei é que nem sei quanto durou aquela conversa, apenas que uma luz se acendeu sobre aquela minha velha vontade de rever tudo, tudo.