09.08

Artista, que morou em uma loca na caatinga por mais de 25 anos, encantou com sua coragem e seu pífano.

Luce Pereira (texto)
Jarbas (arte)

Sábado, enquanto o Brasil lamentava a morte do talentoso cantor/compositor Luiz Melodia, o Cariri paraibano perdia uma de suas referências culturais. Mas se o pífano tocado por Zabé da Loca (Isabel Marques) dava a ela a distinção de artista, a história que viveu a tornava uma prova viva de que Euclides da Cunha estava certo quando concluiu, em Os sertões, que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Franzina era, mas forte, sem dúvida, pois chegar aos 93 anos depois de uma infância cheia de necessidades (nasceu em Buíque/PE) e passar mais de 25 deles vivendo sob uma pedra gigantesca, lugar que ganhou status de “casa” depois de fechado com barro, só pode mesmo significar que trazia consigo a determinação de não se deixar vencer. Depois de descoberta ali, já com mais de sete décadas resistindo à aspereza, acabou virando símbolo da luta travada em defesa da reforma agrária e dos agricultores familiares, ganhou uma casinha bem cuidada no Assentamento Santa Catarina (Monteiro/PB), dada pela prefeitura do município em parceria com o Incra, e finalmente pôde ter sossego para tirar música do instrumento aprendido com um irmão, ainda muito pequena. Fez dele seu grande companheiro, depois partilhado através de oficinas dadas a jovens da comunidade, no lar transformado em memorial.
A força de Zabé, seu exemplo, sua trajetória de vida fascinavam para além da própria música extraída da madeira, que, quase no fim, se queixava de estar “mal furada” . Não, era o fôlego que já não alcançava as notas., tarefa também dificultada “pela falta dos dentes”. O acidente doméstico, o fêmur atingido e o peso de nove décadas estavam sobrecarregando em excesso. Mesmo assim ria lembrando a infância, quando os pais imaginavam os filhos na casa de algum parente e eles na verdade estavam no forró. Já vinha daquele tempo o amor pela música de Luiz Gonzaga, vez por outra arrancada do instrumento rústico, especialmente Asa branca. E, claro, nunca na vida poderia imaginar que ele fosse levá-la tão longe, por muitos estados brasileiros, ou mesmo a gravar discos com os quais recebeu prêmios nacionais e até medalha de honra ao mérito do Ministério da Cultura. Sem dúvida, não tinha “o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”, porque, em nome da sobrevivência, caçou até os bichos mais estranhos à culinária da dita civilização, enfrentou o desconforto absoluto e os perigos de viver em cima de uma serra rodeada por caatinga. Sem reclamar.
Embora conhecendo a vida dela através do farto material escrito e gravado, nunca cheguei mais perto para uma conversa afável como costuma acontecer nos encontros entre nordestinos. Mesmo assim, com sua morte, ajudou-me a reforçar certeza das mais valiosas – tudo pode estar por um fio, é preciso não perder tempo. Depois de retornarmos da Missa do Vaqueiro, em julho, eu e a fotógrafa francesa Claire Alice Jean, outro grande talento, dizíamos exatamente da vontade de irmos até a casinha, no Santa Catarina. Ficar por lá sem pressa nenhuma, até que Zabé se fartasse das perguntas e dos “clics”, dando bocejos e começando a cochilar sem qualquer cerimônia. Mas é um erro agir como se tivéssemos um acordo com o imponderável, achando que pode ser maleável em relação à nossa capacidade e tempo de encaixar a vida na agenda de cada dia. Realizando um trabalho em Minas Gerais, Claire lamentou muito a notícia, embora algo nela sugerisse que a despedida não demoraria. “Era uma lenda”, pontuou, acertadamente, lembrando de fotos feitas durante uma apresentação em João Pessoa (PB), há muitos anos: as mãos e o rosto muito enrugados, porém a vida pulsando em cada nota que saía do instrumento. Particularmente, pretendo nunca mais adiar encontros com pessoas raras, únicas. Zabé, sem dúvida, era dessas.