Álbum Caravanas, o 23º da carreira, chegou às lojas sexta-feira, depois de muito elogiado pela crítica.
Luce Pereira (texto)
Nando Chiappetta (foto)
O chico Buarque de Hollanda de quinze ou vinte discos atrás nunca imaginaria que a época em que iria desembarcar o seu 23º trabalho funcionasse como um tribunal feito para não poupar nada nem ninguém. Crítica elogiosa em um grande jornal brasileiro sobre Caravanas (Biscoito Fino), à venda desde sexta-feira, estampa o título “Letras antenadas justificam clamor por novo disco de Chico Buarque” e logo comentários virulentos passam a atacar o conteúdo e o retratado, taxando de “velhos” tanto a gíria utilizada quanto o artista, a quem acusam, entre outras bobagens, de ter começado a carreira“plagiando uns sambinhas de Ismael Silva” e de fazer o mesmo em relação a Tom Jobim, neste álbum. Como se ele tivesse conseguido estar entre os maiores nomes da MPB de todos os tempos apenas se valendo de uma mediocridade da qual não seria capaz nem se esforçando em excesso. Na última parte do comentário, o leitor queixa-se de que Chico continua a escrever músicas de Paris “como se estivesse tomando um chopinho no Leblon e vendo as meninas com Tom e Vinícius, enquanto o Rio vive a maior crise de sua história”. Deduz-se que, não sendo despeito por não poder se dar a tal luxo, pode significar que a pessoa se acha no direito de exigir dele que não apenas não se ausente da cidade como seja um militante político com energia de vinte e poucos anos. Num país assim tudo parece possível e, talvez, durante a vida inteira, a tal pessoa só tenha mesmo saído do sofá para protestar contra o fim do fim de semana.
Por isso voltemos ao disco, que de fato causou clamor não porque a música Tua cantiga, divulgada em julho, tenha soado como afronta a falsos moralismos e à noção de empoderamento feminino, mas porque é uma delícia que mescla letras e arranjos sofisticados, sempre com a preocupação de preservar o olhar certeiro do poeta sobre a realidade e a subjetividade. Nas nove faixas, lá está o Chico que abomina o preconceito e a opressão de qualquer ordem (As caravanas e Blues para Bia, outra que rendeu polêmica porque fala de um homem apaixonado por uma mulher cujo coração só bate por meninas), aquele que segue fiel à meninice, mas consciente da passagem do tempo (Jogo de bola, Massarandupió), o que ama e ama (Tua Cantiga, Blues para Bia, A moça do sonho, Desaforos, Dueto), o que revisita lugares adormecidos na memória, como uma espécie de geografia da ternura (Casualmente, onde se mostra esperançoso de reencontrar a Havana que traz no coração).
A atmosfera de doçura e certa melancolia que passeia pelas faixas (sete inéditas, duas com a participação dos netos Clara e Chico Brown) só realça a força de sua poética, que segue tocando com elegância e suavidade feridas comuns a todos. Se isto é ser “velho”, no pior sentido em que empregam a palavra, não faria mal nenhum pegar emprestado o verso de Caetano Veloso (em Reconvexo) como resposta: “Meu som te cega, careta/ quem é você?”. A pergunta não poderia soar mais oportuna, porque não paira a menor dúvida sobre a importância de Chico Buarque para a Música Popular Brasileira, enquanto é absolutamente lastimável a estreiteza de quem confunde autor e personagem e ainda se dá ao direito de cobrar do primeiro posicionamentos políticos contrários aos que sempre defendeu. Como, se na vida e na obra ele sempre procurou manter a mesma coerência? Mas é fim de semana. Melhor que os ouvidos se distraiam com Caravanas, que se não é o melhor disco dele, é tão bom quanto qualquer outro de sua lavra.