Cantor sabia do poder de sedução da sua arte, e não se inibia diante de ninguém.
Urariano Mota (texto)
Samuca (arte)
A lei proposta pelo deputado Edilson Silva pôs o brega como bem cultural de Pernambuco. Mas não há um só brega, há gêneros de brega. E como prova, recupero do Dicionário Amoroso do Recife esta homenagem.
Lembro de um comício de Miguel Arraes em 1986, em campanha para governador. Isso se deu na praça da Vila dos Comerciários, em Casa Amarela. Camisa aberta no peito, calças justas, cabelo black power, Reginaldo Rossi era a atração máxima que chamava o público mais despolitizado. Arraes sempre foi um político de ideias de esquerda, mas isso ele fazia ao lado de um grau imenso de pragmatismo. Quem era o rei que atraía o povão? — Reginaldo Rossi. Então vamos a ele. E assim foi.
O diabo é que Reginaldo sabia do poder de sedução da sua arte, e não se inibia diante de ninguém. Imaginem. Quando ele tomou a frente do palanque, depois das palavras de apoio ao líder Arraes, Reginaldo mandou ver:
“Ai, amor
Você diz isso com jeitinho
Ai, amor
Quando eu te faço algum carinho
Ai, amor
Esse suspiro vem de dentro de você …”
A essa altura, o povo havia aumentado na praça, chamado pelo som dos alto-falantes que estrondava com a voz de Reginaldo Rossi. Mas não só. Além da letra da música, quando ele cantava havia um tom de deboche, pois sabia o que a massa queria ouvir. Quando ele suspirava em voz quente “ai, amor”, uma nuvem de poeira subia. As camisas giravam por cima das cabeças, que deliravam como se estivessem em uma encenação pornográfica, em um verdadeiro e popular Império dos Sentidos. “Ai, amor”, Reginaldo repetia num requebro. Olhem, declaro que me senti muito envergonhado, ao mesmo tempo que não conseguia tirar os olhos do palco. E por isso, cravei os olhos no candidato Arraes, que recuou, mal escondido das voltas dos quartos de Reginaldo.
No primeiro “Ai, amor”, foi bem clara a desaprovação do candidato. Ele olhou atravessado para o rei e pigarreou alto. Pra quê? Reginaldo abriu os braços para um mais largo “ai, amor, também suspiro…”. Então Arraes baixou a cabeça, como quem diz “essas bandeiras da frente ampla do Recife estão amplas demais para mim”, mas calou, e na continuação do “é tão gostoso ver teu corpo estremecer”, Arraes entrou em um imóvel silêncio. Para maior liberdade do rei Reginaldo, que tinha a massa de revoltados sem rumo na canção.
Ai, amor. No comício de Arraes em 1986, o povo pulava, agitava-se, gritava, diante da ambiguidade do cantor a girar os quadris em movimentos que imitavam um coito em pé. Ou melhor, Reginaldo fazia movimentos, meneios de oferecimento, um convite irresistível ao que virá, ou devia vir. Aqueles quadris eram uma representação do ato amoroso, da dor que não é dor embora lembre a dor.
Mas por que faço este reconhecimento tardio? Por que nunca disse antes que para mim a canção A Raposa e as Uvas mereceria uma crônica à parte, que falasse dos amores suburbanos cheios de cafonice e de sentimento? Por que somente agora escrevo? — É que o povo me deu uma lição no dia do falecimento de Reginaldo Rossi. O povo maior é pobre e sem vergonha. É pobre e sincero, mas seu sentimento não é miserável nem mesquinho. Foi de comover até as pedras as declarações de pessoas feias, como a estúpida juventudezinha alienada as chama, “gente feia”, foi comovente ver as domésticas, os motoristas, os garçons, as mulheres e homens de todas as categorias profissionais, que sem vergonha e sem pudor gritavam no Recife, no dia do enterro:
— Rei, Rei, Reginaldo é nosso rei!
A gente fundamental do Recife se despedia do seu Reiginaldo, o rei dos sem rei.