Insegurança e indigência política apontam para a porta de saída, embora a decisão de ir em definitivo doa.
Luce Pereira (texto)
Editoria de arte (imagem)
Sou viajante de corpo e alma. Minha melhor terapia, a que produz melhores resultados, sempre foi fazer as malas e pegar a estrada, um navio ou um avião (sim, porque, a irresponsabilidade política, no Brasil, acabou com os trens). Cada viagem foi feita sob inspiração da ideia de beber o mundo e voltar para casa sonhando com o tempo em que também teremos qualidade de vida, segurança (sobretudo), ruas bem pavimentadas, espaços públicos criados para o cidadão se refazer da carga diária de estresse e incertezas acerca do futuro. Afora o choque inicial de se deparar com contraste tão gritante entre o que existe noutros lugares e o que não muda aqui, retornar nunca deixou de ser agradável, porque, afinal, ninguém é turista o tempo inteiro e a rotina em horas assim deixa de ser assustadora e corrosiva. Mas, infelizmente, tudo tem mudado numa velocidade tão vertiginosa – e para muito pior – que é impossível continuar a mesma viajante. Passamos a dormir e acordar num mar de dúvidas, enquanto apenas uma certeza vai ganhando forma: talvez a próxima viagem seja apenas de ida.
Uso o plural porque o sentimento é partilhado com um número surpreendente de pessoas que têm as mesmas expectativas e ideias sobre a vida, todas afetadas pela indigência política capaz de transformar a arte de sobreviver na mais desafiadora das tarefas. Trocando em miúdos: nunca vi tanta gente falando em ir morar fora, queimando neurônios para descobrir uma maneira de ao menos passar alguns anos em outro país, lá sentindo a alegria de poder viver as ruas sem a sombra aterradora da violência “no varejo”. Sim, ainda que o terror se encarregue de ameaçar a paz, do outro lado do oceano, e seja argumento recorrente contra a ideia de uma vida sossegada em lugares do mundo “desenvolvido”. Na cabeça do brasileiro comum que pensa em mudar de endereço persiste apenas o sonho de poder sair de casa, pegar um transporte público seguro, pontual, limpo e confortável, desfrutar de uma cidade com serviços funcionando bem, dispor de espaços agradáveis ao ar livre e com razoável oferta de lazer, o que necessariamente não implica em desembolso de quantias significativas. Há um número satisfatório de eventos e atrações culturais gratuitos.
Nos tempos atuais, nem mesmo a praia, espaço mais democrático, consegue ser unanimidade em termos de lazer, porque assaltos e arrastões passaram a fazer parte dos riscos iminentes. Nesta semana, a propósito do próximo feriado gordo, um amigo confidenciava, em tom melancólico: “Que saudade dos 7 de setembro em que o ‘patriotismo’ começava o dia descansando nas areias da Praia de Boa Viagem e depois saía para uma tarde de conversas moles em algum bar da orla. Já penso seriamente que, talvez, esteja na hora de mudar de ares”. Concordei, com a tristeza que ainda me cabe. Quinta-feira, mais provável é que a maioria resolva pegar a estrada (ou um avião) na esperança de passar três dias serenados, sem a angústia de se ver entre a vida e a possibilidade de perdê-la para uma guerra tão estúpida. De fato, estamos todos saudosos de sossego, que, no Brasil, nunca existiu em medida desejável, mas nunca foi tão precário; nunca praticamente obrigando a uma clausura compulsória, dessas que lembram condenados cumprindo pena domiciliar.
Repito que sou viajante de corpo e alma, porém, agora, sem garantia nenhuma de voltar para casa com o velho sentimento de recomeço movido a comparações e sonhos. Já parecem inúteis. Posso ter me transformado numa viajante sem a velha ilusão de que a qualquer tempo passaria a viver em um país no qual já não encontrasse motivo para querer me ausentar. “Mas a vida é real e de viés”, como diz a música, o que sugere reflexão e calma. No mínimo. De toda forma, as malas continuam a um canto, como prontas para qualquer escolha, a qualquer tempo. Ainda nos cabe decidir.