Reflexão sobre o poder local: relembrando uma história dos anos 1980 em relação a acontecimentos atuais.
Vandeck Santiago (texto)
Karina Morais/Esp.DP (foto)
Perguntem a Roberto Magalhães para ver se não foi assim que aconteceu. Ele era governador (1983-1986), vindo de uma consagradora vitória sobre o principal nome da oposição na época, Marcos Freire. Certo dia uma onça fugiu do zoológico do Recife e o caso, de tão grave, foi bater diretamente no governador. Preocupado — uma onça à solta, no Recife, imaginem —, Magalhães determinou a aplicação de providências imediatas para capturar o animal. Ele próprio ligou para José Múcio Monteiro, então secretário de Energia, Transportes e Comunicações: “José Múcio, preciso de sua ajuda, uma onça fugiu do zoológico…”.
“Doutor Roberto, estou aqui atendendo três Coelho”, respondeu José Múcio. Um deles era o então deputado estadual Fernando Bezerra Coelho, do mesmo partido do governador, o PDS. “Eles têm uma lista enorme de reivindicações. O que eu posso fazer?”.
Roberto Magalhães não pensou duas vezes. Preferiu enfrentar a onça:
— José Múcio, administre os Coelho que da onça cuido eu…
O animal acabou sendo morto pela PM. E Fernando Bezerra Coelho, que apesar de muito jovem (foi eleito aos 25 anos) se revelara um competente deputado estadual, se tornaria tempos depois secretário da Casa Civil do governo Roberto Magalhães.
Não há nada de desabonadora nesta história, e só me lembrei dela porque o agora senador Fernando Bezerra Coelho está nas manchetes das páginas políticas. Ele e seu grupo devem migrar do PSB para o PMDB. Seu filho Miguel Coelho, de 27 anos, é prefeito de Petrolina. Outro filho, Fernando, 33 anos, é ministro das Minas e Energia. Ambos representam a quarta geração da família.
Na “lista enorme de reivindicações” que os Coelho apresentaram a José Múcio, naquele dia de tensão da onça fugitiva, não constava nada ilícito. Era um ato usual de prática política, ou, pelo menos, de um tipo de prática política. Quem tem poder, busca reproduzir-se. Uma das formas dessa reprodução é ocupar espaços privilegiados e ter suas reivindicações atendidas, razão pela qual grupos de poder local costumam ser governistas. Quando não são governistas, estão no barco de quem tem a perspectiva do poder. Não é um julgamento, só constatação.
Talvez hoje, no Brasil, a trajetória da família Coelho seja o caso mais exemplar de poder local. De 1955 até agora (ou seja, 62 anos ininterruptos), eles nunca perderam uma eleição para prefeito de Petrolina. É natural que sonhem com o governo do estado — sobretudo o senador Fernando Bezerra Coelho, que está com 60 anos. Para entender melhor sua história voltemos ao tempo da onça fugitiva, no governo Roberto Magalhães. Fernando era secretário da Casa Civil. Deixou o cargo para apoiar a candidatura do oposicionista Miguel Arraes, que fora cassado pelo golpe civil-militar de 1964, retornara do exílio e ia disputar o governo do estado (foi eleito). Uma espantosa mudança de palanque: numa analogia com os dias de hoje, era mais ou menos como se Eliseu Padilha deixasse o governo Temer e declarasse apoio à candidatura de Lula. Naquele ano, 1986, houve uma cisão na família Coelho, e Fernando (com o pai, Paulo) mudou-se de armas e cuia para o palanque da esquerda. Até então, os Coelho haviam crescido na base de apoio do regime militar. Nilo Coelho (tio de Fernando) fora governador indicado de Pernambuco, no período 1967-1971.
O patriarca da família foi Clementino de Souza Coelho, o coronel Quelê (1885-1952). Teve 17 filhos: seis mulheres e 11 homens. A ala da família, que permaneceu fiel ao regime, perdeu todo o espaço que tinha.
O líder hoje é Fernando (seu pai, Paulo de Souza Coelho, também filho do coronel Quelê, morreu em 2003). Até hoje ele nunca teve as condições ideais para disputar o governo do estado, cargo que no período democrático tem sido ocupado por quem tem atuação no Recife. Apesar dos sucessos econômicos de Petrolina, o município fica a cerca de 800 km do Recife, 950 km de Fortaleza, 600 km de Teresina e 500 km de Salvador. Fernando tem procurado encurtar as distâncias mudando de partido — foi do PDS, do PMDB, do PPS, do PSB e agora deve retornar ao PMDB. Três vezes prefeito de Petrolina, ex-ministro da Integração Nacional (governo Dilma), ex-deputado federal, ele tem a experiência necessária para perseguir o seu sonho. Mas, se de um lado a mudança contínua lhe permitiu reinventar-se e lhe garante protagonismo, de outro gera o problema típico de quem está sempre em movimento: às vezes está no papel da pessoa certa no momento errado, e às vezes como a pessoa errada no momento certo. Não sei se este é o caso dele agora, nem mesmo se será candidato. A resposta para esse tipo de questão só saberemos com o tempo.