Primogênito de um dos maiores nomes do artesanato de barro de Tracunhaém, Marcos se queixa de mão de obra.
Luce Pereira (texto)
Claire Alice Jan (foto)
Reconheço que tendo nascido aqui sou suspeita para falar, mas ainda assim arrisco dizer que Pernambuco tem o artesanato mais bonito do Brasil. Enche os olhos, porém, quase nunca os bolsos daqueles decididos a viver do que as mãos produzem. Pude constatar isto, mais uma vez, no último fim de semana. Era domingo e encontrei Marcos de Nuca (Marcos Borges da Silva) e a mulher, Sandra, com as mãos no barro, em casa, como se o ofício não permitisse trégua. O município da Zona da Mata Norte onde moram está a apenas 72 quilômetros do Recife e segue sem dar sinal de que pretende mudar uma máxima da região sobre sua fama: “Em Tracunhaém, ou barro vira santo ou vira panela”. Mas, na casa do herdeiro de um dos mestres mais conhecido da cidade, Nuca, falecido há três anos, ele se transforma com maior frequência em leões de jubas cacheadas, peça que passou a ser vista como ícone do artesanato do estado, espécie de releitura do Leão do Norte, símbolo da antiga pujança política, econômica e cultural de Pernambuco. Eles estão, por exemplo, nos jardins de Boa Viagem e em muitas cidades do Brasil e do exterior, além de museus e galerias de arte, mas tanta popularidade não se traduziu em ganhos financeiros à altura.
A casa é muito simples e o ateliê foi improvisado em um dos cômodos por onde se espalham sacos de barro, peças prontas ou em vias de ir para o velho forno que está no quintal, na frente do acesso à oficina. Um papagaio, de vez em quando, quebra o tom das lamentações, cantando algumas notas do Hino Nacional, parece não gostar de ver o rosto do dono ganhar sombras. E isso acontece quando o primogênito de mestre Nuca se queixa da falta de um projeto que consiga unir o irmão Guilherme, dois filhos e o neto Marcos Vinícius numa espécie de cooperativa para aumentar a renda do grupo. Na verdade, ele teme mesmo é pela continuação da arte herdada do pai, pois os mais jovens, sobretudo, não se sentem estimulados a produzir sistematicamente, com a frequência que a demanda exige. No meio deste caminho existe sempre o apelo da diversão fácil e da bebida, maior das tentações em pequenas cidades onde a presença do poder público é tão precária que falta lazer, cultura, esportes e, enfim, qualquer recurso capaz de desviá-los do descompromisso. Na verdade, o pouco que existia está desaparecendo pela falta de manutenção.
A esperança de Marcos é que rapidamente consiga produzir a quantidade de peças necessárias para abrir uma pequena loja no centro onde clientes serão melhor atendidos, as vendas tenderão a aumentar e assim a família não ficará dependendo tanto das vendas na Feneart, uma das maiores feiras de artesanato do Brasil, que acontece em julho, no Centro de Convenções. “É muito cansativo, a gente precisa ir e voltar todos os dias e as peças que mais procuram, justamente porque a produção não é constante, acabam logo”. A mais recente preocupação dele é registrar todas as que foram criadas pela família para que não volte a acontecer o que houve quando da colocação de um leão de Nuca gigante (seis metros de largura por sete de altura) na frente do Terminal Marítimo de Passageiros do Recife. Segundo disse, a obra não foi produzida pela família. “Não queremos brigar com ninguém, mas essa é uma criação dos meus pais, não é justo”, desabafou enquanto fazia um leão de tamanho médio, com preço próximo de R$ 500. “A cabeleira dá muito trabalho”.
Desde os 12 anos com as mãos no barro e já caminhando para os 50, o filho mais velho de Manoel Borges da Silva tem uma expressão triste, que reflete a incerteza com os caminhos do legado do pai frente à pouca valorização da cultura popular no país e ao descompromisso manifestado pelos descendentes da “ponta da rama”. Mas é compreensível. No meio da desesperança, no entanto, ele espera uma espécie de milagre como o que, na década de 1980, levou o mestre a expor em Lima (Peru) e depois em Paris (França). Vale sonhar, afinal, sem o sonho, a arte não é nada.