As mãos hesitam, doem, mas a dama do barro de Tracunhaém, aos 93 anos, segue sem jogar a toalha.
Luce Pereira (texto e foto)
Cheguei ao número 76, na frente da Praça Costa Azevedo, achando que iria encontrar com certa energia, ainda, a artesã que sempre fez santos de barro metidos em roupas largas e levemente pregueadas. Mas o tempo é avassalador em sua maneira sutil de passar. Constatei isto desde a entrada de Tracunhaém, olhando para o rio que há 20 anos corria livre e relativamente limpo: estava tomado por baronesas, as margens irreconhecíveis, sufocadas pela visão de imóveis sem jeito, nascidos de uma arquitetura inimiga da estética e aliada da necessidade. Pouco reconhecia daquela época. Olhei pelo quadriculado da porta e na segunda sala avistei a senhora presa a uma cadeira de rodas, junto à TV ligada. Gritou de lá que estava sozinha, pois o filho, Ricardo, havia saído. Foi quando um casal aproximou-se, ofereceu ajuda e puxou o ferrolho. Entrei, fui até ela e em pé mesmo ouvi-a desfiar um rosário de lamentações e memórias.
Dona Maria Amélia é das artesãs mais antigas de Tracunhaém (Zona da Marta Norte), terra dos mestres do barro, pessoas que desistiram da vida dura nos canaviais para arrancar da argila uma arte apreciada além das fronteiras do estado e do país. Gente simples que nasceu e cresceu com muito pouco, quase nada de estudo e muita sabedoria para criar família numerosa e ainda legar-lhes alguma possibilidade de futuro, normalmente a partir da transmissão do ofício. Maria Amélia mesmo aprendeu com o pai, Mestre Dunde (João Bezerra da Silva), que era louceiro e incansável na tarefa de estimular a menina: “Faça o que quiser, do jeito que quiser, mas faça muitos”, dizia a ela, que naquele tempo deveria ter uns 8 anos. Porém, os bichinhos sugeridos como lição de começo foram logo dando lugar a figuras religiosas maiores e mais trabalhadas. Dona Maria sempre gostou de santos e até santa vestida em gibão fez. No meio da conversa, insistiu para eu levar a Nossa Senhora das Dores que estava na companhia de um São Francisco de Assis, na vitrine da sala.
Mas não era bem um presente. Patrimônio Vivo de Pernambuco desde 2011, Maria Amélia da Silva está que é só pele e osso, enfrenta problemas físicos e praticamente já não trabalha porque as dores nas articulações não deixam. E haja dinheiro para comprar remédios e fazer tratamentos, além do que os clientes já não aparecem em número que ajude significativamente a dar conta das despesas gerais. Paguei pela peça, sem demora. Com a saúde fragilizada, quem precisa finalizar a maioria das peças é o filho Ricardo, a quem ela devota um amor impressionante: “Penso que se ele fosse uma mulher, talvez não cuidasse desse jeito de mim”. Mas, por ironia, é justamente esse amor que lhe aperta o peito. Ou melhor, a ideia de deixá-lo “neste mundo tão ruim”, quando se for. Choramos juntas, porque, daqui em diante, as dores na alma se revelaram mais à flor da pele.
A artesã mais antiga em atividade no estado, diz com voz embargada que gostaria muito de poder ainda reunir forças para dar vida às peças que traz na cabeça, junto com as lembranças de tempos bons como os que viveu em 2003, quando foi à França participar de uma exposição em homenagem ao Brasil. Queixa-se de esquecimento, mas nunca do que continua lhe arrancando sorrisos – o fato de ter peças suas espalhadas por museus, galerias e coleções particulares de amantes da cultura popular no país e fora dele. Nesta hora, parece a menina de oito anos a quem o pai confiou a continuidade do ofício e que se transformou na dama do barro de Tracunhaém. É, há muito, mestra entre os mestres.