É como se a pessoa vivesse se boicotando a partir de “argumentos” negativos vindos do fundo da mente.
Luce Pereira (texto)
Jarbas (arte)
Muitas vezes olhei para J.S.S (apenas as iniciais, por motivos óbvios), 36 anos, fazendo as mais altas apostas de que teria um futuro brilhante, cheio das facilidades proporcionadas por uma vida financeira confortável. Sempre foi um sujeito com múltiplos atributos intelectuais, inteligência que nunca deixou dúvidas, mas algo ocorria quando era submetido a grandes desafios na vida profissional, e logo nos estágios probatórios: passava a suar além da conta, tinha taquicardia, sentia o estômago se transformar em uma usina de ácido e por fim o rendimento caía tanto que a alta performance dada como favas contadas acabava pior do que a de colegas com desempenho mediano. Então, a tentação de desistir falava mais alto do que o objetivo e ele entregava os pontos.
Na verdade, o que sempre fala mais alto são as vozes interiores que trabalham sem descanso para transformar meta em cinza antes mesmo de ela ganhar contornos decisivos. E como doenças oportunistas, passam a dominar a situação quando encontram terreno fértil, o indivíduo fragilizado por uma onda de insegurança que arrasta a crença em si mesmo para um abismo. J.S.S estava sempre em “modo recomeço” e a cada tentativa, mais candidato a adicionar uma nova desistência às tantas experimentadas. Sofria de perfeccionismo óbvio, que dava a impressão de ser seu maior algoz. Aquilo jamais deixaria de me encabular, sobretudo porque considerava uma injustiça e um desperdício ver potencial tão grande ser atropelado pelo maior dos inimigos – o que trazemos dentro de nós como sombras. Impiedoso, ele existe para fazer com que o fracasso torne-se uma obscura sedução, armadilha que o indivíduo prepara, sem sentir, para cair mais à frente. Assim, não há nada de estranho no fato de, uma vez sob controle da poderosa “entidade”, a pessoa se especializar em adiamentos e desculpas para não se promover o melhor. Então, a espiral que começa com a autossabotagem termina num poço de baixa estima.
Este inimigo interior já teve a caverna iluminada pela luz da psicologia/psicanálise desde o tempo em que os grandes nomes da área se lançaram à aventura de desvendar os mistérios da mente humana. Não por acaso, outro dia, lendo uma das mais populares reflexões do pai da Psicologia Analítica, o suíço Carl Gustav Jung, lembrei de J.S.S, que, segundo me confirmaram, anda atualmente se preparando para uma seleção de executivos numa multinacional interessada em expandir seus negócios nos Emirados Árabes: “Que eu faça um mendigo sentar-se à minha mesa, que eu perdoe aquele que me ofende e me esforce por amar – inclusive o meu inimigo, em nome de Cristo – tudo isto, naturalmente, não deixa de ser uma grande virtude. O que faço ao menor dos meus irmãos, é ao próprio Cristo que faço. Mas o que acontecerá se descubro, porventura, que o menor, o mais miserável de todos, o mais pobre dos mendigos, o mais insolente dos meus caluniadores, o meu inimigo, reside dentro de mim, sou eu mesmo, e precisa da esmola da minha bondade, e que eu sou o inimigo que é necessário amar?”. Ao que parece, a personagem deste texto e (de maneira otimista) metade do mundo seguem sem tal resposta.
O que se presume, por uma questão de bom senso, é somente que este antagonista se alimenta de uma dificuldade extrema que muitos indivíduos têm de perdoar e aceitar a si mesmos, de reconhecer falhas, fracassos, frustrações e erros como próprios da condição humana, de olhar e sentir a vida com mais leveza e otimismo, sem se deixar afetar por julgamentos, pois, de acordo com o psicólogo argentino Bernardo Stamateas, o pior inimigo não são as críticas que a pessoa recebe, mas as que aceita. J.S.S sempre resistiu à ideia de se ver em um set terapêutico abrindo as portas de suas cavernas para a luz lançada pela psicoterapia sobre seus dramas. Exclamava sempre que iria tirar isto e aquilo de letra. Soube agora, no entanto, que está pensando seriamente em mudar de postura.