Prática adotada pela empresa não combina com o desenvolvimento harmonizado do Brasil.
Vandeck Santiago (texto)
Alcione Ferreira (foto)
Uma modificação feita no Programa Petrobras Cultural (PPC) prejudica o Nordeste e contribui para a concentração cultural na região Sudeste. Não é de pouca coisa que estamos falando: a Petrobras é a maior patrocinadora da cultura brasileira. Antes um dos critérios para a aprovação de projetos era que tivessem abrangência nacional e outro era que poderiam ter “invisibilidade” para o mercado — ou seja, não precisava estar avaliado como algo relevante em termos de mercado. Os dois itens tornaram possível “que iniciativas culturais do interior do Norte e do Nordeste, sem acesso a apoios privados, florescessem”, segundo trecho de matéria do Estadão sobre a alteração do PPC.
Para que vocês tenham uma ideia do impacto disso: com tais critérios, em 2013 o Nordeste foi a segunda região com mais projetos contemplados pelo programa da Petrobras: 33. O primeiro lugar ficou com o Sudeste, com 69 propostas selecionadas. Em seguida vieram o Sul (15), o Centro-Oeste (10) e o Norte (7). O PPC apoiava propostas em diversas áreas: artes cênicas, cinema, formação e preservação, literatura e música.
Este resultado diverge de outros, na área de projetos. Vejamos dados da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), responsável por definir quem terá o direito de obter recursos via Lei Rouanet, que é o principal instrumento de incentivo à cultura no país. Em 2016, entre as propostas apresentadas, sabem quantas eram do Sudeste? 62,7% do total. Em outras palavras: de cada dez, 6 eram de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.. A segunda região mais contemplada era o Sul, com 24,4%. O Nordeste vinha lá embaixo, com 8%. Depois o Centro-Oeste (3,5%) e o Norte (1,2%). Em junho passado o TCU divulgou dados de projetos selecionados pela Rouanet e os índices são ainda piores: o Sudeste ficou com 83% deles, vindo a seguir o Sul (8%), Centro-Oeste (5%), Nordeste (3%) e Norte (1%).
São exemplos colhidos ao vento para mencionar um fenômeno que todos conhecem, mas que é pouco falado fora da área em que se manifesta: o da concentração cultural. Que é uma espécie de subproduto da concentração econômica. O raciocínio se justifica sobretudo em relação à Lei Rouanet: a maioria das grandes empresas fica no Sudeste. E se você pretende ter um projeto puxado por celebridades nacionais ou com maior visibilidade, é de lá que eles tendem a sair.
Trata-se de uma antiga questão nunca resolvida. O Programa Petrobras Cultural tentava navegar de forma diferente nessas águas. Mas a alteração nele operada, agora, o transforma em mais do mesmo, no pior sentido dessa expressão. Eis o que diz o gerente de patrocínios da empresa, Diego Pila: “Temos um novo planejamento, vamos chamar agora por segmento. Os próximos serão música, artes cênicas e audivisual. A gente tinha um programa muito alinhado com a política pública de cultura [do Ministério da Cultura]. Agora, é mais focado na Petrobras como empresa, que passa por um reposicionamento de marca, e menos no governo. A empresa avalia onde tem mais potencial de retorno de marketing e território mais próprio [grifo nosso]. Com menos recursos, temos que investir de forma mais assertiva, e em praças onde temos mais visibilidade [grifo nosso].
A mencionada reportagem do Estadão faz um contraponto à fala do gerente de Patrocínios da Petrobras, com afirmação que serve para contextualizar o tema: “O discurso é bem diferente do que a Petrobras manteve no passado, especialmente nos dois governos Lula (2003-2010), quando recebia mais de sete mil inscritos por ano e era instada a distribuir os recursos de maneira equânime por todas as regiões do país, sem favorecer os já privilegiados centros do Sudeste e do Sul”. Atentem para o fato de que a reportagem do trecho citado é do jornal mais tradicional de São Paulo, insuspeito de qualquer simpatia por petistas e cia. limitada.
Enfim, o argumento oficial da mudança é que a Petrobras precisa fortalecer a marca da empresa, fustigada pelos escândalos de corrupção e pela queda na receita. Não digo que não estejam sendo sinceros os que assim se pronunciam. Mas podemos nos reservar o direito de interpretar de outra forma o enunciado — com a forma de que quem aprova esse tipo de decisão não está preocupado com a concentração cultural nem com os seus efeitos. No caso de uma empresa integralmente privada, o raciocínio pode até ser compreendido; no caso de uma empresa como a Petrobras, não. Ao adotar política que privilegia a região A ou B em detrimento de outras, ela incorre em prática que não combina com o desenvolvimento harmonizado do país.