22.09

Fenelivro faz neste sábado debate sobre “o desafio de escrever biografias”, no Centro de Convenções.

Vandeck Santiago (texto)
Helder Tavares (foto)

Se para nada mais servisse a História, já serviria para mostrar que pessoas inteligentes também dizem asneiras. O grande romancista José de Alencar, por exemplo, dizia no século 19 que os escravos no Brasil viviam melhor que os operários na Europa, e que os abolicionistas não passavam de “apóstolos da anarquia” e “emissários da revolução”… Com todo respeito ao genial escritor, quando vejo alguém nos dias de hoje defendendo “progresso para trás” (a expressão é de Rui Barbosa), é dele que me lembro.
A lembrança vem a propósito do debate “o desafio de escrever biografias”, que terei o prazer de mediar neste sábado (23), com o jornalista e escritor Carlos Marchi, dentro da programação da Feira Nordestina do Livro (Fenelivro), no Centro de Convenções, às 17h. Marchi é autor de duas alentadas biografias, ambas publicadas pela Record: a do maior colunista político desse país, Carlos Castello Branco (Todo aquele imenso mar de liberdade, de 2015), e a outra sobre um dos personagens mais fascinantes de nossa política, que fez a travessia do apoio ao governo militar para a de contundente crítico do regime: Senhor República: a vida aventurosa de Teotônio Vilela, um político honesto (2017). O autor já trabalhou nos principais veículos de jornalismo do país e foi assessor de Tancredo Neves, no período em que ele concorreu à Presidência (1984). Para quem gosta de história, em particular de biografia, Carlos Marchi é o homem certo na mesa certa.
Talvez, na conversa, falemos de José de Alencar, mas só como reforço à importância de valorizar o conhecimento que a história nos proporciona (se fosse para falar em profundidade, teríamos de convidar para o debate também o Lira Neto, autor da biografia dele, O inimigo do rei). É esta valorização que aparece no lema desta edição da Fenelivro: “Toda história vira memória, toda memória vira história”. Em conversas que tive com o saudoso Geneton Moraes Neto, dele ouvi com frequência a frase de que “fazer jornalismo é produzir memória”. Todo jornalista deveria ter sua “bandeira”, e ele havia escolhido esta para si, afirmava. Como eu partilhava dessa convicção, fazendo trabalhos na mesma área, e dele ouvi generosas sugestões para novas reportagens, certa vez lhe disse que cunhara minha “bandeira”, que era uma subdivisão da dele, e consistia no seguinte: tarefa de jornalista não é se abastecer do Google; é abastecer o Google.
Comecei em Alencar, passei por Teotônio Vilela, citei Geneton (que se foi em 22 de agosto de 2016) e chego à Era Digital para refletir sobre o seguinte: nos tempos de informação acelerada em que vivemos, uma das consequências é a erosão da memória. O tempo transforma-se, em vez de aliado, num verdugo do pensamento. E tem-se a impressão de que a sobrevivência depende de estar vivo no Google. O poderoso mecanismo de busca transformou-se numa espécie de autos de um processo judicial: se não está lá, não existe.
Criado no final dos anos 1990, o Google se alimentou de conteúdo produzido e/ou difundido a partir daí. Desta data para trás há um oceano inteiro de informações que, mesmo tendo sido bastante difundidas na época, e até publicadas em livro, são pouco conhecidas do público de hoje (o jornalismo, para quem não sabe, é a história escrita às carreiras). Esta é uma das facetas da questão. Outra é que fatos que tiveram repercussão antes, não tiveram todos os seus aspectos conhecidos no momento em que aconteciam.
Entre tantas entrevistas marcantes, quando Geneton entrevistou quatro ex-presidentes (José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso), e deles obteve depoimentos com relatos inéditos, estava “produzindo memória” — e, ao mesmo tempo, “abastecendo o Google”. (A quem se interessar possa: o trabalho virou o livro Dossiê Brasília — Os segredos dos presidentes, publicado em 2005). Às vezes isso acontece mesmo quando a narrativa é sobre algo já sabido, mas que não se encontra disponível na internet — como, por exemplo, um relato sobre as eleições para prefeito do Recife em 1985, ou a recordação do posicionamento que José Sarney teve em relação às eleições diretas em 1984 (ele foi contra; dizia que isso iria prejudicar sobretudo o Nordeste, porque numa disputa dessas preva leceria o interesse do maior número de eleitores de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais…). E vejam vocês que estou dando exemplos da segunda metade do século 20. Se retrocedermos, encontraremos ainda mais material fora do alcance de um clique. Nesses dias de fake news e de vertigem de dados, a informação concatenada, hierarquizada, aprofundada, fruto de cuidadosas apurações, como acontece numa biografia e pode acontecer numa reportagem, é o instrumento perfeito para produzir o conteúdo que vai sobreviver ao tempo.