Geraldo Araújo, de Porto Velho (RO), e Bruce Campbell, dos Estados Unidos, têm em comum a mesma paixão
Luce Pereira (texto)
Reprodução Humor Rondoniense (foto)
Há que respeitar quem, ignorando as adversidades, segue em busca do sonho. Sonhadores obstinados estão cada vez mais raros, porque esta é uma época feita sob medida para desistências. Com o mundo tão descartável e cheio de novidades que não duram mais do que um pequeno ciclo de horas, é fácil acreditar que se pode mudar de sonho como de camisa. Sem pesar nenhum porque, afinal, a oficina de ilusões não para de funcionar nunca e, quando se vê, a estrada percorrida não passa de um amontoado de desejos mortos. No entanto, por cima de pau e pedra, tem gente que vai até o fim, não importando quanto de vida reste. Estas pessoas ao que parece são movidas pela esperança de chegar lá, como se nisso se resumisse a própria vida, como se ao tocar o sonho virassem, na mesma hora, indivíduos sem mais dívida nenhuma consigo ou com o mundo. Este ato quase anônimo de “heroísmo” é comovente, antes de ser digno de aplausos.
Ocorreu-me de escrever sobre o assunto depois de me emocionar com o técnico em eletrônica de Porto Velho (RO) apaixonado pelo objeto central da aviação. Num vídeo, a voz de Geraldo Araújo, 63 anos, fica embargada quando ele explica que na impossibilidade de ter sido piloto decidiu transformar em aeronave metade da casa de um sítio do qual tornou-se dono. Chega mesmo a parecer aquele menino que se desculpa pela ousadia de desejar tanto, quando a filha dá sinais de pretender dissuadi-lo da decisão de “gastar dinheiro” com o projeto, levado a cabo a partir da concordância do cunhado pedreiro João Batista em ser o responsável pelo imóvel de inusitada arquitetura – ao menos para quem se surpreende olhando-o desde a estrada de chão batido que passa pelo terreno. Entre cabisbaixo e consciente quanto ao preço do sonho, Geraldo explica que se já cumpriu todas as obrigações como pai merece seguir livre de cobranças em relação à obra. Trata-se do maior sonho, afinal.
A falta de recursos suficientes obrigou-o a, por enquanto, se contentar em construir apenas a parte que corresponde às cinco primeiras janelas e à cabine de comando, que fica colada ao resto da casa. Estranho é, mas ele garante que não vai desistir da construção da aeronave inteira, bastando para isso conseguir os recursos necessários. Pode levar o tempo que for, porque paixão verdadeira não sossega enquanto não é exercida plenamente. A propósito, ela se mostra tanta, desde menino, que revela outra face inquieta da obstinação: encantado já na juventude pelos cenários e histórias envolvendo aeronaves, meteu-se a fazer filmes através dos quais dá asas à frustração que veio da impossibilidade real. Tem dois prontos e um terceiro a caminho, cujos protagonistas são, é claro, pilotos – de foguete ou de avião. Apesar de a construção (que começou há um ano) já estar em vias de ser concluída, o autor de tudo o que se vê ali quer caprichar nos detalhes, abusar do realismo, pois será ali o laboratório de sua próxima história a virar filme.
Fico aqui pensando num encontro entre Geraldo Araújo e o norte-americano Bruce Campbell, que comprou a fuselagem aposentada de um Boeing 727 e instalou-a no meio de uma área de floresta, no estado do Oregon, onde vive seis meses por ano. Os outros seis, passa no Japão, em busca de mais exemplares já sem uso. A casa-avião é inovadora, de visual atraente e a cabine de comando, toda acesa, dá a impressão de que a decolagem acontecerá dali a segundos. Custou, à época, US$ 23 mil. Araújo certamente vibraria muito ao se ver dentro do mais delirante dos seus sonhos, que também foi o maior de Campbell, aos 20 anos. O mundo dá voltas – quem sabe? Mas, diante de tão grande persistência, é preciso reconhecer o óbvio: sem os sonhadores a vida não teria metade da graça.