Para deter a intolerância, é preciso a unidade de todos aqueles que são contra os intolerantes.
Vandeck Santiago (texto)
Ludovic Marin/AFP (foto)
Nesses dias de narrativas envenenadas, de mentiras propagandeadas como verdade, de clamores pela volta da censura e de discursos e atos de ódio, que barricadas erguer contra estes que vêm de lá, babando e sedentos? Há muitas, e uma delas é o livro. A chanceler alemã Angela Merkel acaba de dizer uma frase genial sobre isso. “Não poder ler todos os livros que você quer, faz você lutar para que ninguém mais passe por isso”, disse ela, ao abrir a 69ª Feira de Livros de Frankfurt, anteontem.
Quem, como eu, já viveu sob uma ditadura, sabe o que é tentar ler um livro importante e não o encontrar em lugar nenhum — nem nas bibliotecas, nem nas livrarias, nem nas próprias editoras que o produziram. Isso acontece às vezes sem que seja necessário um decreto dizendo: “A partir desse momento ficam proibidas a posse, a divulgação ou a edição do livro tal”. . Mas é como se houvesse; basta o autor entrar numa lista imaginária de “inimigo do governo” para desaparecer das prateleiras e até das residências.. Quando se deu o golpe civil-militar de 1964, muita gente que tinha livros prováveis de entrar nessa categoria correu para desfazer-se deles. Ninguém, por exemplo, editava nem estudava os livros de um dos maiores cientistas sociais do mundo nos anos 1950/1960, o brasileiro Josué de Castro.
Os totalitários temem alguns livros como se fossem algo vivo, capaz de irradiar a luz que alumia as trevas na qual eles se sentem à vontade. Na democracia, não podemos ceder a esse temor. “A literatura, como a política, é mediadora. Ela constrói pontes”, disse Merkel. Ela estava acompanhada de Emmanuel Macron, presidente da França, país que este ano é homenageado na Feira. Ambos pregaram tolerância e diversidade — bens que andam escassos, ou sob bombardeio, no mundo inteiro, inclusive no Brasil. A foto ao lado é expressiva: Macron e Merkel preparam-se para imprimir a primeira página da Declaração Universal dos Direitos Humanos numa réplica da prensa de tipos móveis criada por Gutenberg, no século 14.
“Lutamos por nossos livros e nossa cultura. Sem cultura, não há Europa. Livros são a melhor arma”, discursou Macron. Maior e mais tradicional evento sobre livros do mundo, a Feira de Frankfurt acaba neste domingo. Tem mais de 600 escritores convidados e recebe 7,3 mil editoras de 100 países. “Quem entendeu melhor Baudelaire que Walter Benjamin? Quem entendeu melhor Nietzsche que André Gide? Este não é um evento só comercial e diplomático. É um lugar central para se manifestar, o momento em que os dois países olham um para o outro — para o que o outro é”, disse Macron. A ministra da Cultura da Alemanha, Monika Grütters, entoou a mesma cantiga: falou em enfrentar “as tendências populistas de direita” com a força da cultura e da literatura, expressão dos valores comuns das democracias: “Pluralismo, abertura, tolerância e participação social”.
Antes deles, o presidente da Feira, Juergen Boos, já pedira aos produtores de livros para empenhar-se no combate “à propagação do medo e do ódio”. É de Boos a expressão “narrativas envenenadas”, que usei na abertura deste artigo. “Em tempos como esse, quando narrativas envenenadas se tornaram populares e que a disseminação do medo e do ódio voltaram a ser aceitáveis”, disse ele, “nós, liberais com uma mente democrática, profissionais do livro, devemos responder com argumentos atrativos”. A ênfase apareceu também no discurso do presidente da Associação de Editores e Livreiros da Alemanha, Heinrich Rietmüler: “Todos nós notamos as trincheiras crescentes em nossa sociedade. As pessoas estão divididas com relação a diversas questões importantes, como a dos refugiados. Em momentos desafiadores, o mercado editorial precisa mais do que nunca se posicionar. Diante da crescente tensão social, incertezas políticas e notícias falsas, editoras e livrarias funcionam como fiadoras do bom entendimento, da informação confiável e da diversidade de opinião”.
Frankfurt não é aqui, nem temos visto nossos governantes enfrentando com firmeza a onda de ações e discursos pró-intolerância que têm surgido no país inteiro. Mas lá de Frankfurt, da abertura de um evento que celebra a cultura, vem o exemplo de como fazer frente às “narrativas envenenadas” e à “disseminação do medo e do ódio” — é com a unidade de todos aqueles que, independentemente de suas opiniões políticas, sabem que os intolerantes estão de um lado, e a democracia, de outro. A unidade é necessária para isolar aqueles, e fortalecer esta.