16.10

No ano da morte do reitor Luiz Carlos Cancellier, ler o russo é o mesmo que ver a barbárie do país.

Urariano Mota (texto)
Arte/DP (imagem)

Para mim, a palestra de Rubens Figueiredo foi o ponto luminoso da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco. Ali, ele nos falou sobre Ressurreição, o imenso e mais caluniado romance de Toltói. Na ocasião, o tradutor e escritor Rubens Figueiredo nos falou:
“Ressurreição focaliza o sistema judiciário e prisional da Rússia. Mas não há como atenuar o caráter opressivo e discriminador da sociedade, em todo o mundo”. Ou como nos informa na apresentação do livro: “A reputação de romance de tese e de cunho evangélico foi útil no curso das polêmicas ideológicas do século 20, a fim de desviar a potência crítica que o livro contém” – a da crítica mais profunda ao sistema de justiça sob o capitalismo, podemos ver.
Mas o que é esse grandioso romance? Em resumo, este é o “enredo”:
Kátia, filha de uma criada e de pai desconhecido, serve a duas solteironas da nobreza que vivem em uma propriedade rural. As nobres são tias de Nekhliúdov, o protagonista da história. Ardoroso, Nekhliúdov em uma noite de paixão engravida a jovem serva. Então, em nome da moral, Kátia é expulsa da casa e vai sobreviver em um prostíbulo, onde é acusada de um assassinato que não cometeu. Por ironia, ou natural lógica do sistema, Nekhliúdov é convocado para ser membro do júri que decidirá a sorte da moça. Chocado, Nekhliúdov descobre que a acusada é a pobre serva, de cuja ruína ele se sente responsável. Mas esse remorso ninguém, entre amigos e autoridades, compreende. Que absurdo, ter dor na consciência por algo tão bobo, uma mulher de baixo a quem ele feriu, e agora é criminosa. O nobre civilizado somente poderia estar louco, desequilibrado, delirante….
Daí, dessa história real, acontecida na Rússia e que torna a acontecer até hoje em todo o mundo, Tolstói realiza uma condenação vigorosa e permanente contra o sistema judiciário e penal. Sei que a esta altura poderiam perguntar, talvez à semelhança dos pares de Nekhliúdov: o que isso tem a ver com o Brasil de hoje? Esclareço, ou tento esclarecer, com alguns trechos do próprio romance:
“- Qual é o sentido da justiça?
– A manutenção dos interesses de uma classe – responde Nekhliúdov. – O tribunal tem o único propósito de conservar a sociedade na situação atual e para isso persegue e executa tanto aqueles que se encontram acima do nível comum e querem elevá-lo, os chamados criminosos políticos, como também aqueles que se encontram abaixo, os chamados tipos criminosos….
– Sempre digo aos senhores funcionários da magistratura – prosseguiu o advogado – que não consigo vê-los sem me sentir grato, porque se eu não estou na prisão, e o senhor também, e todos nós, é apenas graças à bondade deles. Levar cada um de nós à privação dos direitos particulares e a lugares não tão distantes é a coisa mais fácil do mundo.
– Mas se tudo depende do arbítrio do promotor e das pessoas que têm o poder de aplicar ou não aplicar a lei, para que existe o tribunal?
O advogado soltou uma divertida gargalhada.
– Mas que perguntas o senhor me faz! Ora, meu amigo, isto é filosofia. Escute, venha me visitar no sábado. Em minha casa, encontrará sábios, literatos, pintores. Então conversaremos sobre questões gerais – disse o advogado, que pronunciou as palavras ‘questões gerais’ com uma ênfase irônica.
O riso com que o advogado respondeu ao comentário de Nekhliúdov de que o tribunal não tinha sentido, se os funcionários da magistratura podiam, ao seu arbítrio, aplicar ou não a lei, e a entonação com que pronunciou as palavras ‘filosofia’ e ‘questões gerais’ mostraram a Nekhliúdov como ele e o advogado, e provavelmente os amigos do advogado, encaravam as coisas de formas diferentes e que, por maior que fosse o seu atual afastamento em relação a seus amigos antigos, Nekhliúdov sentia-se ainda muito mais distante do advogado e das pessoas do seu círculo.
A prisão ficava longe e já era tarde”.
Então, como todo artista de gênio, Tolstói nos abre o abismo:
“Naqueles estabelecimentos penais as pessoas eram sujeitas a toda sorte de humilhação desnecessárias, ou seja, eram privadas do principal motor das pessoas fracas para levar uma vida boa: a preocupação com a opinião das outras pessoas, a vergonha, a consciência da dignidade humana”.
Como são atuais estas palavras, no ano da morte do reitor Luiz Carlos Cancellier, da UFSC, que se matou pela desonra de que foi vítima: acusado sem direito a visitar a própria vida, a sua universidade. Estes são os tempos da perseguição a Lula, criminoso pelo que tenha feito, pelo que venha a fazer ou pelo que poderia ter cometido, na cruel luta de classes nacional. Ler Ressurreição é o mesmo que ver a barbárie do Brasil 2017.