Brasil paga o preço de não ver que eleição para o Congresso tem tanta importância quanto a presidencial.
Vandeck Santiago (texto)
Luís Macedo/ Agência Câmara (foto)
A cena do deputado Carlos Marum (PMDB-MS) fazendo uma dancinha para comemorar a vitória do presidente Michel Temer na votação da Câmara, anteontem, serve para nos mostrar que o Brasil está pagando o preço de não perceber que a eleição parlamentar é tão importante quanto a presidencial. Em 2014 os olhares e atenções voltaram-se majoritariamente para a corrida presidencial, e tivemos a formação da pior legislatura desde a redemocratização de 1985. Agora, faltando um ano para a nova disputa, estamos caindo na mesma armadilha: foco total nos pré-candidatos e a disputa legislativa escondida lá no canto (alvo, inclusive, de tenebrosas modificações para garantir a sobrevivência de velhas raposas).
Em defesa da tese sobre a extrema importância da votação para deputado e senador, permitam-me dizer que tudo que está acontecendo no país, absolutamente tudo, já era capaz de ser previsto em outubro de 2014 — e foi. “Congresso eleito é o mais conservador desde 1964, afirma o Diap”, destacava matéria do Estadão de 6 de outubro de 2014. “Congresso Nacional se enche de representantes ultraconservadores”, bradava o El País em 7 de outubro do mesmo ano, acrescentando: “Congresso deve se tornar mais reacionário. Deputados racistas, homofóbicos e contra o aborto estão entre os mais votados”.
O próprio desfecho do governo Dilma Rousseff já poderia ser visto logo após a eleição dos novos parlamentares. As bancadas dos grandes partidos, como PT e PMDB, sofreram reduções, enquanto a de pequenos e médios cresceram. A legislatura de 2015 começou com 28 partidos. “Houve uma pulverização partidária e a governabilidade ficará mais difícil”, dizia já em outubro de 2014 Antonio Augusto de Queiroz, analista do Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar). “Isso obrigará o futuro presidente da República a negociar com eles, que não se pautam por questões programáticas ou ideológicas”. Em 31 de janeiro de 2015, com Dilma eleita, um estudo do Diap afirmava que a governabilidade dela iria depender, principalmente, da “boa vontade” do Congresso, em especial dos presidentes da Câmara e do Senado. “Nesse cenário, perder o controle da Câmara ou do Senado será trágico”, ressaltava o estudo, profeticamente.
E o eleito para a Presidência da Câmara, quem foi? Ele, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que surfando na onda conservadora conseguiu aumentar a sua votação de 150 mil votos em 2010 para 232 mil em 2014. O mesmo Rio de Janeiro em que o deputado mais votado foi Jair Bolsonaro. O que aconteceu lá verificou-se também em diversos outros pontos do país. Em Goiás, a maior votação coube a um candidato que sequer se elegera em 2010: Waldir Soares (PSDB), cujo slogan de campanha era “45 para bala e 00 para algemas”, numa alusão ao seu número de candidato, 4500. No Rio Grande do Sul o campeão de votos foi Luiz Carlos Heinze (PP), autor da frase de que “quilombolas, índios, gays, lésbicas e tudo que não presta” estavam abrigados no governo Federal. Em Brasília, o 1º lugar da votação ficou com o coronel da Polícia Militar Alberto Fraga (DEM), contrário ao desarmamento, favorável à redução da maioridade penal e hostil aos programas sociais em curso. Em um dos seus posicionamentos maior repercussão na campanha, ele afirmava: “Quer transar? O governo dá camisinha. Engravidou? Bolsa-Família. Tá desempregado? Seguro-desemprego. Matou ou roubou? Tem auxílio reclusão”.
Não foram casos isolados. O número da bancada de parlamentares voltados para a defesa de trabalhadores caiu, e o da empresarial subiu. A bancada de ambientalistas caiu, a de ruralistas subiu. Fortaleceram-se as chamadas bancadas da Bala, da Bíblia e do Boi. Qualquer presidente que entrasse, ou faria concessões a esses grupos ou teria dificuldades na governabilidade (acrescente-se ao quadro as revelações e implicações da Lava-jato e o território estaria adubado para crises). Não queremos dizer que ser conservador ou progressista seja intrinsecamente ruim ou bom — mas posições radicalizadas, em bloco, provocam um desequilíbrio perigoso na pauta de propostas e na relação estabelecida entre Executivo e Legislativo.
Ninguém pode querer diminuir o papel fundamental de um, ou uma, presidente em um país sob regime presidencialista. Igualmente, porém, não podemos relegar ao papel de figurante a eleição parlamentar. Sob pena de, cedo ou tarde, ver um deputado em votação decisiva estourar um rojão de confetes na Câmara ou outro ensaiar uma dancinha — e, de repente, vermos o nosso horror confrontado com fato de que todos que estão ali foram eleitos por nós.